Entrevista com Marcos César Alvarez

Marcos César Alvarez – NEV e FFLCH USP

Nasci em Mogi das Cruzes, na grande São Paulo. A infância e a adolescência foram vividas durante os anos de chumbo do regime autoritário e, desde adolescente, acompanhava as notícias de violações dos Direitos Humanos, tanto na grande imprensa quanto na assim chamada imprensa “nanica”, de esquerda, da época. Sem dúvida, isso me impulsionou também a entrar no curso de Ciências Sociais da USP, embora não tivesse nenhum tipo de militância social ou política prévia. Fiz então graduação em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (1981-1984), mestrado (1985-1990) e doutorado (1991-1996) na Sociologia da USP. Iniciei minha carreira como docente na Universidade Estadual de Londrina (1987-1991), depois na UNESP, campus de Marília (1991-2004) e na USP, onde sou atualmente professor e orientador no mestrado e no doutorado.

OSP: Por que no Brasil há a persistência das violações de direitos Humanos?

Acredito que a principal explicação encontra-se na fragmentação de nossa experiência democrática. Caracterizando-se por fortes hierarquias e desigualdades sociais desde a época da colônia – mas que foram sendo reproduzidas igualmente nos contextos do Império e da República –, a sociedade brasileira não conseguiu consolidar suficientemente suas instituições democráticas, com um passado de rupturas institucionais e não cristalização de valores igualitários no âmbito da cultura. Apenas com a redemocratização dos anos 80 do século XX, o país começou uma efetiva consolidação das instituições democráticas mas, paradoxalmente, num contexto de agravamento da crise econômico e social. Por exemplo, a partir dos anos 80 do século XX, houve um crescimento explosivo da violência comum nos grandes centros urbanos, violência esta resultado sobretudo dos anos de descalabro institucional e de crescimento das desigualdades no âmbito econômico, promovidos pelo regime militar. Paradoxalmente, setores conversadores passaram a atribuir tais males à Democracia – e não ao nosso passado autoritário – e, sem dúvida, as instituições democráticas ainda não responderam de modo adequado aos desafios no âmbito penal e da segurança pública no país.

OSP: O Estado Brasileiro vem sendo denunciado sistematicamente por esses problemas. Onde reside o problema, onde estão as resistências?

Por um lado, no âmbito das instituições estatais, há um forte corporativismo na polícia e na justiça que impede o avanço da discussão de reformas institucionais fundamentais e da promoção de toda uma cultura voltada para a promoção dos Direitos Humanos.

Por outro lado, no âmbito da assim chamada opinião pública, instalou-se um discurso conservador que promove o pânico em torno da questão da insegurança social, divulga a idéia de que os Direitos Humanos são “direitos de bandidos”, estimula o populismo penal e pouco espaço abre para a divulgação efetiva dos Direitos Humanos. Finalmente, ainda temos uma sociedade profundamente hierárquica, na qual a questão da desigualdade pode ser ilustrada tanto no consumo desenfreado de bens de luxo por parte das elites quanto pelas incivilidades das classes médias.

OSP: Como fazer face às resistências dos órgãos institucionais diante das regras básicas dos DH?

As frentes são múltiplas mas o problema precisa ser enfrentado em toda sua complexidade: disseminação de uma cultura dos direitos humanos entre os agentes da segurança pública; encaminhamento de demandas diversas no âmbito jurídico; desenvolvimento amplo de uma cultura dos Direitos Humanos no âmbito da população em geral; estímulos à pesquisas e à  organizações não-governamentais na área etc.

OSP: Como podemos caracterizar historicamente as Políticas de Segurança Pública no Brasil?

Pensando em termos mais gerais, o que eu chamaria de “racionalidade punitiva”, envolvendo a justiça, a segurança pública mas também outras instituições que participam da construção da punição numa sociedade como a brasileira, eu diria que o enigma a ser decifrado é como, na experiência brasileira, em momentos históricos bastante diversos, como o Império, a República e os diversos momentos de ruptura institucional, a racionalidade penal no país se desenvolve de modo a não promover os valores da liberdade e da igualdade, pelo contrário, termina por promover as hierarquias e desigualdades sociais. Nunca se trata de uma explicação simples – a polícia e a justiça não são simples instrumentos da “classe dominante” – mas eu diria que precisamos entender como as instituições da área tornaram-se impermeáveis, no geral, aos valores democráticos e ao avanço da cidadania.

OSP: Como fazer com que essas políticas assumam um padrão mais moderno que caminha na direção de ações mais flexíveis e mais afeitas às regras da democracia?

Acho que, diante da complexidade de nossa realidade política e social, pouco adiantaria avançar propostas genéricas, que acabam funcionando mais como slogans do que como propostas operacionais. Daí a importância das inúmeras pesquisas que têm sido feitas na área, que avançam diagnósticos precisos no âmbito da polícia, da justiça, das prisões etc. Se ainda assim fosse necessária uma afirmação genérica, eu diria que é preciso conectar de forma mais radical a segurança pública aos valores democráticos e à promoção da cidadania no país.

OSP: Quais são os maiores desafios a serem enfrentados pelas políticas de segurança pública no dias de hoje?

Em termos gerais, pensando no “sistema punitivo” em nossa sociedade, acho que são urgentes reformas no âmbito da polícia e do judiciário. Mas prefiro não adiantar diagnósticos genéricos sobre o tema.

OSP: Como compreende a presença do crime organizado e particularmente das milícias urbanas?

Novamente, não sou especialista na área, mas acredito que é chave para pensar essas questões entender como se dá o monopólio da violência por parte do Estado no país.

Uma hipótese interessante é que no Brasil, o “monopólio” do Estado sempre conviveu muito bem como formas de violência ilegais e privadas e a presença das mílicias e do crime organizado estariam dentro dessa lógica no Brasil contemporâneo.

OSP: E a violência cometida pelo próprio Estado?

Se a questão central é o problema de como foi construído no país o “monopólio da violência legítima” pelo Estado, este ganha centralidade tanto em termos de compreensão como de intervenção. É comum a ideia, mesmo entre os operadores da justiça e da segurança pública, que o Estado é violento porque a sociedade é violenta. Acho que precisamos pensar e agir em sentido contrário: apenas controlando a violência ilegal do Estado é que poderemos chegar a uma sociedade também mais pacificada.

OSP: Qual é o papel das perícias criminais e da criminologia sobre o controle do crime?

Acho que as perícias criminais e a polícia científica, em geral, são fundamentais para o combate ao crime e, em nosso caso, para romper com os procedimentos puramente inquisitoriais que ainda marcam nossa cultura policial.

A Criminologia no Brasil ainda está pouco desenvolvida, acredito que ela deveria se integrar mais aos estudos da Sociologia da Violência e outras áreas das Ciências Humanas, e menos como disciplina aplicada ao combate ao crime.

OSP: Conte-nos um pouco a história da criminologia no Brasil.

A Criminologia no Brasil, no final do século XIX e início do XX, desenvolveu-se sobretudo a partir da incorporação das teses de Lombroso sobre o assim chamado “criminoso nato” e as determinações biológicas do crime.

Quando da institucionalização das Ciências Sociais, a partir de meados do século XX, o campo da Criminologia no Brasil permaneceu impermeável às discussões mais científicas produzidas nas disciplinas desse campo, permanecendo dogmático, não voltado para a pesquisa empírica e reproduzindo os estereótipos mais diversos sobre o homem criminoso.

Apenas a partir dos anos 80 do século XX a área voltou-se para teorias mais críticas mas acho que ainda falta um diálogo mais decisivo com o que é produzido no conjunto das Ciências Sociais.

OSP: Quais são as tendências internacionais na área?

Em contrapartida, em países de língua inglesa e também na França, toda uma Criminologia crítica tem se desenvolvido, articulada aos debates mais amplos no campo das Ciências Sociais e tendo a preocupação de igualmente influir nas políticas da área de segurança pública.

OSP: Quais autores internacionais mais ajudam a compreender essas questões? Por quê?

Apenas como exemplo, citaria autores como Laurent Mucchielli e David Garland que justamente desenvolvem idéias e pesquisas interessantes no âmbito do estudo do crime e da punição, sempre tendo por base as teorias e pesquisas das Ciências Sociais.

OSP: E no Brasil, quais autores e obras devem ser lidar obrigatoriamente para quem quer compreender esses problemas?

No Brasil, entre muitos outros, os trabalhos de Sérgio Adorno, Paulo Sérgio Pinheiro, Kant de Lima e Alba Zaluar são fundamentais para a compreensão do problema da violência e seu combate no Brasil contemporâneo.

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O Observatório de Segurança Pública da UNESP é um portal da Internet que procura facilitar acesso às informações sobre Segurança Pública no Estado de São Paulo.