Apropriação capitalista do trabalho doméstico e reprodutivo não remunerado da dona de casa sob a perspectiva de gênero.

POR BRENDA DIAS

A DUPLA SERVIDÃO DA MULHER:

‘’ Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado.’’ – Silvia Federici.

RESUMO

Sob a perspectiva de gênero, este artigo traz em pauta os desdobramentos da ‘’ naturalização’’ dos trabalhos doméstico e reprodutivo da dona-de-casa e a não-remuneração do mesmo no sistema econômico capitalista. A abordagem adotada tem como pressuposto o rompimento entre o trabalho reprodutivo e o modo de produção capitalista, visto que, o que move as fábricas e o processo de produção é o trabalho invisibilizado de milhões de mulheres, conforme aponta Silvia Federici (2019). Conclui-se que, a divisão instituída entre os sexos(sic) parte de uma socialização do biológico e de uma biologização do social (Pierre Bourdieu, 2012), significa dizer que a divisão sexual do trabalho situa-se enquanto produto de uma situação histórico-social e não tem, portanto, nenhuma relação a ‘’ natureza’’ biológica feminina e/ou masculina. Portanto, o sexo biológico é utilizado arbitrariamente como justificativa de manutenção do status quo, posto que às mulheres permanecem situadas enquanto seres apolíticos e restritas à cozinha e ao quarto, e os homens transitam livremente por entre a assembleia e o mercado. Vale ressaltar, não conduzo a discussão a termos econômicos somente, mas também sociológicos, haja vista as potencialidades que podemos desbravar de uma divisão sexual do trabalho ao tratarmos da esfera doméstica e seus desdobramentos. O sociólogo Pierre Bourdieu (2012) nos auxiliará ao buscarmos compreender a raiz dos papéis sociais atribuídos arbitrariamente aos sujeitos, entendendo que o princípio de divisão fundamental entre os sexos (sic) é a motriz da ordem social à qual estamos inseridos. Por conseguinte, a filósofa Silvia Federici (2019) conduzirá nosso percurso ao destrincharmos as externalizações do trabalho não-remunerado da dona de casa e a função reprodutiva que esta desenvolve para o sistema capitalista, posto que a autora afirma possuir um valor para o capital.

PALAVRAS-CHAVE: trabalho doméstico não-remunerado; trabalho reprodutivo; divisão sexual do trabalho; modo de produção capitalista; esfera privada.

  1. INTRODUÇÃO

Há um conjunto de normas e comportamentos prescritos e inscritos nos corpos e nas práticas dos agentes, adquiridos e incorporados de acordo com a posição social em que estão inseridos. Dessarte, desbravar a atuação da esfera doméstica feminina, em uma sociedade regida por relações capitalistas, revela o seu caráter não tão inocente como a ordem social masculina busca, incessantemente, ocultar. Consoante Pierre Bourdieu (2012), autor da Dominação Masculina, os papéis exercidos pelas mulheres são fortemente sexuados, e o lugar ocupado por elas na sociedade é produto de construções histórico-sociais que instituem lugares pré-determinados aos indivíduos de acordo com a produção arbitrária do sexo biológico que pode ‘’ ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros’’ (2012, p. 20).

Com efeito, o mundo social calcado no patriarcalismo propõe a existência de uma estrutura objetiva – relacionada ao ser – e de uma estrutura cognitiva – relacionada ao conhecer –, que incorpora nos corpos dos agentes, através do habitus, princípios de visão, de pensamento e de ação dominantes, classificando e ordenando coisas e práticas segundo a oposição entre o feminino e o masculino e incorporando nas mulheres propriedades negativas, de acordo com a lógica da dominação; em outras palavras, a sociedade tem como base a visão patriarcal-masculina que institui fronteiras extremamente rígidas entre mulheres e homens. Como reflexo dessa divisão arbitrária, em seu estado objetivado, há uma separação da produção e das atividades consideradas ‘’ improdutivas’’ – divisão sexual do trabalho -. Mais amplamente, cabem aos homens a função das atividades produtivas do mundo público, que gera capital, e às mulheres destina-se o posto do ‘’ improdutivo’’ situado a esfera privada, como a função de cuidado com a prole e do papel reprodutivo. São relações de caráter ideológico-política de apropriação, e as mulheres estão em constante posição de inferioridade.

A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação (BOURDIEU, 2012.) 

Através de um ‘’ trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social’’ (2012, p. 9), a diferença anatômica socialmente construída e incorporada nos corpos torna-se o fundamento aparentemente natural da realidade social. O habitus classifica e ordena coisas e práticas segundo a oposição entre o feminino e o masculino, incorporando nas mulheres propriedades negativas, de acordo com a lógica da dominação. A divisão arbitrária entre os sexos(sic) está localizada na ‘’ ordem das coisas’’, sendo vista como algo ‘’ natural’’, ‘’ a ponto de ser inevitável’’ (2012, p. 17). Isto é, a dicotomia entre o feminino e o masculino, instituída a partir do sexo biológico, criou um movimento social e cultural de educações diferenciadas que ambos recebem no processo de socialização com o mundo objetivo. Em vista disso, é louvável e ‘’ natural’’ que os homens se ocupem de funções as quais dizem respeito à realização pessoal e profissional e as mulheres se mantenham incumbidas na realização de multitarefas e esqueçam de si mesmas.

O mito do ‘’ multitarefa’’ parte de uma visão biologizante – que convém diretamente, e tão-somente, aos homens – de que as mulheres obtêm competência cerebral para realizarem diversas funções. As mulheres, ao se desdobrarem em funções reprodutivas, como o cuidado com a criança, marido e até mesmo com os idosos da casa, e demais atividades do âmbito privado (sem deixar de considerar que muitas delas exercem dupla jornada de trabalho), legitimam, inconscientemente, a dominação posta. Às formas de socialização que as mulheres recebem, desde os primeiros contatos com o mundo externo, são distintas das auferidas pelos homens, refletindo em uma bifurcação da representação de suas funções na sociedade, que as desassociam dos espaços públicos e das esferas de poder (argumento melhor desenvolvido no capítulo 2). Em suma, o mito do ‘’ multitarefa’’ e o lugar destinado às mulheres vêm para invisibilizar o trabalho doméstico e prova a grande injustiça social que elas vivem. 

Objetiva-se a importância de dar corpo, voz e identidade à invisibilidade social do trabalho doméstico não remunerado, como aquele que mantém o mundo em movimento. Ao falar de trabalho doméstico feminino no lar entende-se, além do cuidado com a casa, por trabalho reprodutivo. A reprodução social é a base do sistema econômico e também político, ela constitui a força de trabalho extremamente importante para o capitalismo. Como apontado por Silvia Federici (2019), em O Ponto Zero da Revolução, a força de trabalho reprodutiva não é exercido de forma livre e autônoma em relação ao capitalismo, não nos reproduzimos de acordo com os nossos anseios, mesmo quando permutado por um salário comumente degradante, ele está ‘’ sujeito às condições impostas pela organização de trabalho e pelas relações de produção’’ (2019, p. 214).

Indubitavelmente, superar a biologização como pressuposto para a equidade de gênero é um passo grande e importante a ser dado, e questionar a configuração em que os sujeitos se encontram na sociedade e os motivos que levam a manutenção e, consequentemente, à ‘’ naturalização’’ dos papéis sociais exercidos pelas mulheres no lar é historicizar as diferenças pré-estabelecidas entre os sexos(sic) ‘’ tal como a (des)conhecemos’’ (BORUDIEU, 2012. p. 8). Não há nada de ingênuo nos ditames sociais conservadores de afirmar o lugar da mulher na sociedade, menos ainda as funções sociais de cuidado deferidos a elas e seu encarceramento na prole. Essas questões ocultam interesses que nos propõem a perguntar quais são, questões estas que não têm nenhuma relação com a natureza biológica feminina e/ou masculina. A ‘’ natureza’’ biológica dos corpos não é uma continuação das aptidões que os indivíduos desenvolvem ao longo de suas vidas, ao contrário, são ‘’ armas’’ utilizadas pelos mantenedores do poder, refletindo na subordinação de uns e dominação de outros. Nesse contexto, citamos Silvia Federici (2019, p. 42/43): 

[O trabalho doméstico] não só tem sido imposto às mulheres como também foi transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas, uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina. O trabalho doméstico foi transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado (Grifos meus).

  1. A FUNÇÃO DOS TRABALHOS DOMÉSTICO E REPRODUTIVO PARA O CAPITALISMO

Silvia Federici (2019) aponta que o trabalho reprodutivo e doméstico da dona de casa é o motor que mantém o mundo em constante movimento. Essa afirmação nos leva à falsa dicotomia entre a esfera privada e a esfera pública, visto que o trabalho intensivo da produção depende de um componente extremamente importante e parte do capitalismo: o trabalho doméstico não assalariado para a reprodução da força de trabalho. A mulher, afeiçoada aos mandos do patriarcado e do capitalismo, atende as necessidades fisiológicas básicas do marido-proletário, como a alimentação, a vestimenta, a atividade sexual, e dentre outras para que assim o capitalismo possa, de forma cada vez mais intensiva, explorar esse trabalhador no processo de produção. Nas palavras de Federici (2019): ‘’ o trabalho reprodutivo está, em todas as suas facetas, sujeito as condições impostas pela organização capitalista de trabalho e pelas relações de produção’’ (2019, p. 214). A imensa quantidade de trabalho doméstico não-remunerado e depositado nas costas das mulheres é a razão da sobrevivência do capitalismo, diminuindo o custo da força de trabalho. Perquirir o trabalho doméstico é investigar as outras formas pelas quais o capitalismo explora as mulheres. Na fábrica ou fora dela, sendo o forno das indústrias ou o do fogão, a dona de casa é uma proletária da (re)produção da força de trabalho. 

A esse respeito, encontramos uma diferenciação entre produção e reprodução, destacadas por Federici (2019). Inicialmente, a primeira distinção refere-se à tecnologia no processo de produção, aonde foi possível o aumento da produção por unidade de tempo e menor demanda de mão-de-obra. Por outro lado, o trabalho doméstico não passou pela mesma reestruturação, não houve a redução significativa do ‘’ trabalho socialmente necessário para a reprodução da força de trabalho’’ (2019, p. 223), mesmo com a inserção das mulheres no mercado de trabalho. O afeto, o sustento da vida, os cuidados físicos e todo o trabalho necessário para a reprodução humana não pode ser redutível à mecanização, visto que, todos esses cuidados, demandam interação humana nas quais ‘’ elementos físicos e afetivos estão intrinsecamente combinados’’ (2019, p. 223).

O segundo destaque se refere à globalização do cuidado. Após o programa de ajuste estrutural, que consiste em empréstimos fornecidos pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelo Banco Mundial (BM) a países de Terceiro Mundo, e a reconversão econômica, o trabalho reprodutivo foi internacionalmente reorganizado e passa a ser preenchido por mulheres imigrantes, ”especialmente no que se refere à prestação de cuidados de crianças e idosos e para a reprodução sexual de trabalhadores homens” (2019, p. 224). Com a reorganização da esfera privada de acordo com os interesses do mercado capitalista, o trabalho doméstico entrou em crise e foi remanejado às mulheres que trabalham como cuidadoras remuneradas. As consequências da globalização do cuidado implica em 1) relações de poder entre as mulheres, instituindo uma divisão entre elas, visto que, aquelas com melhores condições financeiras têm a possibilidade de transferir a outras mulheres os serviços domésticos do lar e reprodutivos através de um pagamento, e 2) há um custo social para as mulheres imigrantes e às famílias que elas deixam para trás.

Como a participação das mulheres no trabalho assalariado aumentou imensamente, grandes cotas de trabalho doméstico foram retiradas do lar e reorganizadas no mercado por meio do crescimento da indústria de serviços, que agora constitui o setor econômico dominante do ponto de vista do emprego assalariado. Isso significa que, agora, mais refeições são feitas fora de casa, mais roupas são lavadas em lavanderias ou em tinturarias a seco, e mais alimentos são comprados já prontos para o consumo (FEDERICI, 2019, p. 224).

O trabalho reprodutivo da mulher, para a teoria feminista, se insere no Modo de Produção Capitalista (MPC), intimamente relacionado com a reprodução de uma mercadoria. A socióloga Garcia Castro (1980) avalia o trabalho doméstico não-remunerado como indispensável para o barateamento do preço da força de trabalho, a reposição (1980 apud BRISOLLA, 1982, p. 9). Essa situação reflete a mesma encontrada pela antropóloga alemã Verena Stolcke (1980), posto que, a universalização e ‘’ naturalização’’ da família visa à redução dos custos da reprodução da força de trabalho, sob a perspectiva da burguesia, obtendo de forma gratuita a contribuição das mulheres (1980 apud BRISOLLA, 1982, p. 9). Conforme referencia Negraes Brisolla (1982), o trabalho doméstico da dona de casa torna-se imprescindível para a reprodução dos homens e à renovação das energias despendidas no trabalho. Contudo, a reprodução física dos trabalhadores já empregados na atividade capitalista não é o único meio de assegurar a força de trabalho. Não obstante, o capitalismo consegue extrair mão-de-obra da população economicamente ativa, com isso, o trabalho doméstico não se torna o único elemento capaz de reproduzir a mercadoria força de trabalho, uma vez que ‘’ o crescimento da força de trabalho no capitalismo processa-se independente do crescimento da população’’ (1982, p. 24).

Sobre a última colocação, Negraes Brisolla (1982) considera que o capitalismo pode reproduzir a força de trabalho de acordo com as suas necessidades, como a introdução da tecnologia no processo de produção, na liberalização de mão-de-obra, e pela mobilização de inativos – os não pertencentes ao trabalho da esfera civil – através da ‘’ destruição de esferas não subordinadas diretamente ao capital’’ (1982, p. 226), como, por exemplo, o campo agrícola e a esfera doméstica. O capitalismo ‘’ capitaliza’’ formas de organização de produção que são indiretamente subordinadas a ele, como as formas de trabalho no campo. Para que aja uma dependência daquele trabalhador para com o capitalismo, através do salário, o trabalhador é despossado de qualquer vínculo com a terra e os meios de produção. A parte excedente da população faz com que ‘’ seja mais reduzida a taxa de incorporação de mão-de-obra associada à taxa de acumulação’’, portanto, cria-se a mercadoria força de trabalho ao mesmo tempo em que institui a demanda dessa mercadoria.

Ressalta-se que, o significado de ‘’ trabalho’’ é o mundo do trabalho masculino do capitalismo, interpretado, portanto, como dependente da conexão entre a esfera privada e a civil. Dito isso, sendo considerado servidão doméstica ou serviço doméstico, os afazeres da dona-de-casa não são acatados enquanto trabalho, inclusive, ele não é incluído no cálculo do PIB (Produto Interno Bruto) e suas provedoras estão ausentes dos cálculos dessa força de trabalho. O salário é considerado um símbolo de troca voluntária: o trabalhador, por meio de um contrato, exerce seu trabalho em troca de um salário. No caso da trabalhadora doméstica, ela não recebe um salário, ao contrário, trabalha gratuitamente em troca de subsistência e proteção. Verifica-se em Federici (2019) algumas consequências que isso traz, a começar pela função social da família que a relação assalariada mistificou, escondendo ‘’ a extensão da subordinação das nossas relações familiares e sociais às relações de produção’’ (2019, p. 77). Em outras palavras, o salário não só oculta o trabalho não pago destinado ao lucro, mas esconde que o trabalho não-assalariado se torna relação de produção, ‘’ de modo que todos os momentos da vida operam em função da acumulação de capital’’ (2019, p. 77).  

O salário e a falta dele permitem ao capital obscurecer a verdadeira duração da nossa jornada de trabalho. O trabalho aparece apenas como um compartimento único da vida, realizado apenas em momentos e espaços determinados (2019, p. 77).

Ademais, Federici (2019) enfatiza que o capital ofusca a identificação da classe trabalhadora por meio do uso do salário, mantendo os trabalhadores de todas as categorias divididos entre si, por um lado, uma ‘’ classe trabalhadora’’, por outro lado, um proletariado ‘’ não trabalhador’’. À visto disso, a dona de casa é considerada uma parasita, visto que, por não receber um salário em troca do trabalho doméstico e reprodutivo prestados, ela depende economicamente de alguém para sustentá-la, neste caso, o marido. Via de regra, verifica-se que o salário do marido é insuficiente para bancar as despesas da casa, bem como colocado por Carole Pateman (1988/1993, p. 205), n’O Contrato Sexual: ‘’ o salário família sempre foi mais um ideal que uma realidade’’. Vorazmente, não são todos os trabalhadores do sexo masculino que têm uma família a espera de seu sustento, ao contrário de muitas mulheres que, geralmente, sustentam dependentes. 

Paralelamente, há relações de poder no mercado de trabalho formal, aonde as mulheres exercem funções tidas como desvalorizadas. Isso reflete em salários diferenciados sexualmente, porque se espera da mulher uma dependência em relação ao marido, em que a troca pelo seu sustento é o trabalho doméstico não pago. Acrescenta-se ainda que a desigualdade salarial no mundo público pode ser justificada por meio da ‘’ natureza’’ biológica feminina de que a sua função é em casa e para com o marido. Trabalhando meio período ou período integral, a tendência é sempre que as mulheres recebam menos que os homens, visto que o seu salário é considerado complementar e a sua função é exclusivamente dentro da prole. A violência simbólica e suave exercida pelo capitalismo contra as mulheres é uma forma de empurrá-las à esfera privada doméstica. Visto que o salário pode significar uma identificação da pessoa enquanto trabalhador, ele oculta o trabalho não pago que resulta no lucro. 

O capitalismo exerce sobre a dona de casa uma violência simbólica ao passo em que a exploração por elas sofridas no privado de suas casas é imperceptível a elas próprias. Pierre Bourdieu (2012) acrescenta que a violência simbólica é invisível a suas próprias vítimas porque ela se exerce por meio do habitus. Não é através da capacidade de conhecimento e de assimilação do saber que as mulheres vão se dar conta da exploração a que estão submetidas ao se dedicarem (quase que) integralmente às atividades domésticas e reprodutivas não remuneradas, justamente porque a violência simbólica está aquém da consciência e da vontade, sendo exercida nas vias ‘’ puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou do desconhecimento, do reconhecimento, do sentimento’’ (2012, p. 7). Em suma, é o processo de socialização a que as mulheres estão submetidas que as fazem crer na ‘’ naturalização’’ das atividades domésticas e reprodutivas, e a violência simbólica se objetiva na divisão sexual do trabalho e de reprodução biológica e social. Desta forma, os papéis sociais femininos têm sua raiz fincada no trabalho doméstico, sendo uma extensão da casa, as mulheres são treinadas para cuidar, limpar e, sobretudo, obedecer, o que de acordo com Federici (2019): ‘’ dificulta a nossa lua dentro de casa’’. 

Desde que “feminino” se tornou sinônimo de “dona de casa”, nós carregamos para qualquer lugar essa identidade e as “habilidade domésticas” que adquirimos ao nascer. É por isso que as possibilidades de emprego para mulheres são tão frequentemente uma extensão do trabalho doméstico, e o nosso caminho ao assalariamento muitas vezes nos leva a mais trabalho doméstico (Silvia Federici, 2019, p. 76).

Nos próximos dois capítulos argumentei sobre a divisão sexual do trabalho e a luta pela remuneração do trabalho doméstico e produtivo da dona de casa, tão evidenciado por Silvia Federici (2019).

  1. DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Apesar da constante luta pela dessexualização do trabalho doméstico no lar, como a repartição das tarefas domésticas entre homens e mulheres, ainda fica a cargo das mulheres a função reprodutiva, devido aos mecanismos estruturais responsáveis pela eternização da divisão sexual do trabalho e das outras divisões correspondentes. A diferença anatômica, socialmente construída, torna-se o princípio fundamental de divisão social que, em seu estado objetivado, reflete na dicotomia entre a produção e a reprodução. Bourdieu (2012) acrescenta que a ordem social estrutura o espaço e o tempo dos indivíduos de acordo com o princípio de divisão fundamental, sendo o mundo público, da assembleia e do mercado, reservado aos homens, e o interior das casas reservado às mulheres, bem como os longos períodos de gestação femininos e os momentos de ruptura masculinos (2012, p. 18). 

Para Federici (2019), desde que o ‘’ feminino’’ se tornou sinônimo de ‘’ dona de casa’’, as mulheres carregam a identidade da ‘’ dona de casa’’ e as ‘’ habilidades domésticas’’. Esse fenômeno reflete nas possibilidades de emprego no mundo do trabalho, em que as funções, fortemente sexuadas, são uma extensão do trabalho doméstico. É a classe dominante responsável por atribuir um aspecto natural e eterno de sua dominação sobre nós, mulheres. As categorias (estruturas ou disposição) são construídas do ponto de vista dos dominantes e aplicadas aos dominados, fazendo-as ver como ‘’ naturais’’. A ordem social, sexualmente ordenada, ‘’ constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizante’’ (BOURDIEU, 2012, p. 18), logo, as mulheres continuamente são empurradas aos bastidores da casa e a funções que são uma continuação das atividades reprodutivas e do lar. Essa é a divisão sexual do trabalho, aonde o trabalho doméstico intrafamiliar, para além de não ser assalariado, tem uma aparência ‘’ naturalizada’’ – por dificilmente serem acessíveis à mente -, pertencente aos atributos da ‘’ feminilidade’’, afetando diretamente a vida das mulheres ao passo em que elas são objetificadas e vistas como uma máquina receptora, sexuada e programada para receber e agir conforme os princípios de visão e de divisão sexualizante e dominante. Para Bourdieu (2012), as posições, carreiras e/ ou lugares considerados masculinos tornam-se uma experiência negativa para o feminino pela exclusão sistemática delas nesses espaços, conduzindo-as à auto-exclusão através de uma ”agorafobia socialmente imposta, que as conduz a se excluírem de maneira voluntária” (2012, p. 52), além de ser um fator da conservação e continuação dos habitus, contribuindo para a permanência da estrutura da divisão sexual de trabalho.

Carole Pateman (1988/1993), em O Contrato Social, parte da análise dos teóricos contratualistas e conclui que, ao analisar o processo de configuração sexual dos espaços público e privado, os teóricos do contrato configuram o espaço público como pertencentes aos homens, que constroem a política, e a esfera privada para as mulheres, vinculada ao não-civil e relativo ao doméstico. Portanto, o político e o público fazem parte da ‘’ natureza’’ masculina, enquanto o apolítico e o privado pertencem à ‘’ natureza’’ feminina. O trabalho doméstico da dona de casa é o trabalho de um ser submetido sexualmente, ‘’ destituído de controle sobre a propriedade em sua própria pessoa, à qual inclui a capacidade de trabalho’’.  Com efeito, uma esposa nunca deixa de ser uma dona de casa, mesmo quando esta possui um emprego remunerado, ‘’ ela se torna uma esposa que trabalha e aumenta a sua jornada de trabalho’’ (p. 202). No processo de produção de mulheres submissas e estruturadas para a maternidade, a socióloga e psicanalista Nancy Chodorow (1979) colocou em evidência o papel da família. A família nuclear é a essência da ideologia capitalista e está enraizada na divisão capitalista do trabalho. A ideologia capitalista enaltece a família como um mundo particular e externo ao capital, em que a oposição feminino e masculino se funde. Na ausência de um salário, a família representa um espaço de amor e companheirismo, situando-se enquanto o pessoal, o privado e o trabalho improdutivo ao passo em que se opõe ao social, à rua e ao trabalho produtivo.

  1. SALÁRIO PARA O TRABALHO DOMÉSTICO NÃO REMUNERADO ENQUANTO UMA PERSPECTIVA POLÍTICA

A reivindicação pelo pagamento do trabalho doméstico é trazido por Silvia Federici (2019) enquanto uma perspectiva política que pode abrir um novo campo de luta. A autora traz o exemplo da Wages For Housework Campaing (Campanha Internacional Salários para o Trabalho Doméstico), surgida em 1972, na cidade de Pádua. Promovido por uma rede de mulheres de base, a WfH é uma campanha de reconhecimento e pagamento por todo o trabalho doméstico e reprodutivo. Elas identificaram que a exploração da trabalhadora doméstica em seus serviços prestados, e as relações desiguais de poder sob a não remuneração, foram os pilares para a organização capitalista de produção. Para além da WfH explanar as causas da ‘’ opressão das mulheres’’ em uma sociedade regida por relações capitalistas, ela também expunha a 1) desvalorização de campos da atividade humana, como o da reprodução da vida – portanto, o capitalismo carece de trabalho reprodutivo não pago para manter o custo da força de trabalho – e a 2) capacidade do capitalismo de extrair, por meio do salário, o trabalho de grande parte da população de trabalhadores que se encontram pertencentes à categoria de inativos econômicos. 

A proposta da demanda por salários é mostrar que o trabalho doméstico não-remunerado tem um valor para o capital, que a comida preparada pela dona de casa, a roupa lavada, a casa limpa e os cuidados físicos e afetivos com o marido e os filhos gera lucro para o capitalismo e estão ocultados – parece ser um serviço pessoal e externo ao capital – e organizados por meio do salário. Consoante Silvia Federici (2019), o salário pago por um trabalho, além de ser uma forma de reconhecimento como trabalhador, expressa a relação de poder entre o capital e a classe trabalhadora, sendo possível a organização da luta contra os termos e a quantidade desse salário. Sendo assim, é por meio do dinheiro que as mulheres podem lutar e recusar todos os serviços prestados para o capital de forma gratuita. O que antes possuía apenas um valor para o capital, agora, por meio do salário, possui um valor contra o capital, enquanto as mulheres organizam o seu poder contra ele. De maneira geral, o salário para o trabalho doméstico se coloca enquanto uma perspectiva política capaz de abrir novos campos de luta às mulheres (2019, p. 48-66). 

O salário demarca uma linha divisória entre trabalho e não trabalho, fazendo com que o trabalho doméstico do lar realizado pelas mulheres para o capitalismo fosse ocultado das análises e estratégias da própria esquerda, que considera que a dona de casa não sofre com o capital, mas com a ausência dele (2019, p. 64). Quer dizer, a opressão das mulheres no lar ainda é considerada pela esquerda, em sua maioria, como a exclusão das mulheres nas relações capitalistas, e a ‘’ teoria do atraso’’ da política das mulheres só será superada ao passo em que elas adentrarem aos portões das fábricas. Evidencia-se que a esquerda, em seus objetivos estratégicos e organizacionais, cria uma segregação no interior da própria classe trabalhadora, selecionando setores específicos como sujeitos revolucionários e outros ao mero papel de coadjuvantes (2019, p. 63). A opressão das mulheres não começa e termina nos portões das fábricas, a dupla e exploratória jornada de trabalho enfrentada por elas produz e reproduz a força de trabalho, ‘’ o produto mais precioso que existe no mercado capitalista’’ (2019, p. 69). O trabalho doméstico não consiste em, somente, limpar a casa e fazer comida, mas servir física, emocional e sexualmente os assalariados, preparando-os dia após dia para o trabalho fora de casa, além de todo o trabalho reprodutivo que também envolve a criança da casa, em que ela é cuidada e amparada pela mãe para que, futuramente essa criança tenha plenas condições de se tornar um trabalhador.

Consequentemente ao uso do salário pelo capital, a identificação da classe trabalhadora é obscurecida e os trabalhadores se mantêm divididos, por um lado, uma ‘’ classe trabalhadora’’, e, por outro lado, um proletariado ‘’ não trabalhador”. Isso permite ao capital organizar o mercado de trabalho segregando os trabalhadores, sendo um mercado de trabalho para negros, jovens, mulheres e homens brancos (2019, p. 78), o que dificulta a organização da classe trabalhadora. A relação assalariada disfarça a verdadeira função social da família e o trabalho assalariado esconde a subordinação das relações sociais das mulheres as relações de produção – ‘’ elas se tornaram relações de produção -, de modo que todos os momentos da vida operam em função da acumulação de capital’’ (2019, p. 77). Federici (2019) aponta que o capital organizou e continua organizando as mulheres (divisões típicas à organização capitalista do trabalho), seja na cozinha, seja na fábrica, e a luta pelo salário é uma luta contra o salário, contra o poder que ele expressa e à relação capitalista que ele constitui (2019, p. 82). E no caso das trabalhadoras domésticas não-remuneradas, a luta pelo salário é um ataque direto ao capital e à exploração exercida por ele durante as longas jornadas de trabalho expressivas e invisíveis. 

Mais importante ainda: exigir salários para o trabalho doméstico é recusar-se a aceitar o nosso trabalho como um destino biológico, [é] uma condição indispensável para lutar contra ele. […] Queremos um salário para podermos dispor de nosso tempo e de nossa energia, para realizar uma luta, e não para sermos confinadas a um segundo emprego por causa da nossa necessidade de independência financeira (FEDERICI, 2019, p. 82).

Deste modo, lutar por um salário não significa ser um ato revolucionário, mas uma estratégia política de recusa da socialização da fábrica quanto da ‘’ racionalização’’ capitalista do lar (2019, p. 84) que, a curto prazo, enfraquece o papel social atribuído às mulheres na divisão sexual do trabalho e, a longo prazo, modifica as relações de poder dentro da classe trabalhadora, capaz de varrer todas os escombros das estruturas de dominação-exploração. O reconhecimento do trabalho doméstico por meio do salário torna possível a luta contra a reprodução de nós mulheres e de outros como força de trabalho. É extremamente importante ressaltar que a socialização de crianças e o cuidado com as pessoas é uma responsabilidade social, e não exclusiva das mulheres. A luta pelo pagamento do trabalho doméstico faz com que todos aqueles que se beneficiam desse trabalho não-remunerado paguem por ele e socialize essas funções, ao contrário disso, continuaremos contribuindo e fortalecendo para o mito do ‘’ multitarefa’’, destacado no capítulo primeiro, em que questões como afeto e cuidado sejam assuntos de mulheres e do privado.

  1. CONCLUSÃO

Como proposta de luta e resistência contra a discriminação sexual e à dessocialização do trabalho reprodutivo, a autora Silvia Federici (2019) traz como estratégia anticapitalista a política dos comuns com base em uma perspectiva feminista. O conceito de ‘’ comuns’’ vem ganhando popularidade entre a esquerda radical, aparecendo como ponto de convergência entre anarquistas, marxistas/socialistas, ecologistas e ecofeministas (2019, p. 304). A autora apresenta dois motivos pelos quais a política dos comuns tenha vindo para o centro das discussões dos movimentos sociais contemporâneos, a primeira delas é proposta de uma alternativa para o capitalismo que arruinou os movimentos radicais, ocorrendo a ‘’ derrocada do modelo estatista de revolução’’ (2019, p. 304). O segundo motivo foi a conscientização do perigo de se viver em um mundo regido pela lógica do dinheiro frente a ‘’ tentativa neoliberal de subordinar toda forma de vida e conhecimento à lógica do mercado’’ (2019, p. 304). Como enfatizado no capítulo 2, o capitalismo consegue reproduzir a força de trabalho por outros meios para além do trabalho reprodutivo, ‘’ capitalizando’’ esferas indiretamente subordinadas ao capital, como o processo de exclusão dos trabalhadores de seu meio de subsistência. 

Os ‘’ novos cercamentos’’ demonstram que os comuns não desapareceram, que as formas de cooperação social, ajuda mútua e solidariedade estão, constantemente, sendo produzidas (2019, p. 305). Indubitavelmente, os comuns revisitam as possibilidades políticas de enfrentamento ao Estado e ao mercado e à agenda neoliberal de privatização das terras. Além disso, a ideia dos comuns reconstrói, ou melhor, faz renascer a função ideológica da esquerda radical que pressupõe a construção de uma sociedade cooperativa. Como forma de proteger umas às outras frente a pauperização e a violência do Estado e dos homens, as mulheres, de forma autodeterminada, sempre comandaram esforços coletivos ‘’ com o qual temos muito o que aprender’’ (2019, p. 315). O primeiro passo é ‘’ tornar comum’’ os meios materiais de reprodução, para que haja um interesse coletivo e laços mútuos e o trabalho reprodutivo prospere. O segundo passo, e não menos importante, é desvincular a reprodução dos fluxos de mercadoria responsáveis pela desapropriação de milhares de pessoas ao redor do mundo, construindo nossa subsistência além do mercado mundial e ‘’ da máquina de guerra e do sistema prisional de que depende a hegemonia do mercado mundial’’ (2019, p. 316).

Por fim, é através de uma luta política voltada para todos os efeitos da dominação — exercidas na combinação entre as estruturas incorporadas e objetivadas, e nas grandes instituições como o Estado e o mercado, responsáveis por reproduzir a ordem social masculina e os princípios de visão e de divisão, produção e reprodução — que caminharemos rumo a equidade entre os gêneros. Vê-se a importância da não institucionalização do movimento feminista, mas a incorporação do mesmo em organizações autônomas que tenham por objetivo transformar as pautas específicas do movimento feminista em pautas gerais a toda a sociedade, cooperando na luta pela erradicação da dicotomia entre os gêneros e todos os desdobramentos dessa divisão que instituem relações de poder. A luta para que possamos destruir o papel que o capitalismo instituiu e outorgou às mulheres é essencial para pôr fim à divisão sexual do trabalho e ao poder masculino na classe trabalhadora, por meio do qual o capital tem sido capaz de manter sua hegemonia. 

1 GARCIA CASTRO (1980), Mary Garcia Castro. ‘’ A questão da Mulher na Reprodução da Força de Trabalho’’, in Coleção Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, RJ – 1980.

2 STOLCK, Verena Stolck. “Mulheres e Trabalho”, in Estudos CEBRAP n.º 26, Editora Vozes, Petrópolis, RJ – 1980.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

BRISOLLA, S. N. Formas de Inserção da Mulher no Mercado de Trabalho: o caso do Brasil. 304 páginas.  Tese de Doutoramento. UNICAMP, Campinas, dez/1982.

CYRINO, R. Trabalho, temporalidade, e representações sociais de gênero: uma análise da articulação entre trabalho doméstico e assalariado. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 66-92.

FEDERICI, S. O Ponto Zero da Revolução. Trad. Coletivo Sycorax. Editora Elefante, 2019.

PATEMAN. C. O Contrato Sexual. Trad. Marta Avancini – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

O Observatório de Segurança Pública da UNESP é um portal da Internet que procura facilitar acesso às informações sobre Segurança Pública no Estado de São Paulo.