Racionalidade neoliberal e medicalização da vida: uma releitura do documentário “Pro dia nascer feliz”

Por Mariana Carta


O documentário “Pro dia nascer feliz (2007) foi produzido pelo diretor e cineasta brasileiro João Jardim com a produção de Flávio R. Tambellini, música de Dado Villa-Lobos e Fotografia de Gustavo Hadba. Tal produção apresenta diferentes realidades escolares, contextos sociais, econômicos e culturais em três estados brasileiros – Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. São filmadas três escolas públicas e uma de ensino privado. Em Manari – PE, chama-se a atenção para extrema pobreza e precariedade da escola, somado a grande evasão e a falta de professores. Enquanto em Duque de Caixias – RJ, além dos problemas estruturais e pedagógicos da escola, a violência ganha protagonismo. Já no estado de São Paulo, em Itaquaquecetuba as dificuldades convergem com as outras escolas estaduais, e o contraste é visto no colégio de elite no Alto Pinheiro cuja disparidades apontam para outras necessidades dos alunos da classe alta brasileira – um outro “mundo” dentro de um mesmo Brasil.
 A partir de olhares distintos dos sujeitos – alunos, professores e familiares – que compõem estes locais, é retratado queixas, angústias, e outras tantas demonstrações sobre a estrutura educacional em que estão circunscritos. Pretende, ainda, demonstrar as dessimetrias existentes entre as escolas públicas e privadas e a relação dos adolescentes com a escola encofo à desigualdade social e a banalização da violência física e simbólica.
Por meio do documentário nos é permitido levantar inúmeras reflexões quanto à função social da escola, à aprendizagem e a formação humana dos sujeitos que compõe estes espaços. Embora os contextos e as realidades sejam distintos, há um elo que as conduz – a presença e protagonismo da lógica neoliberal. Partindo disto, pretende-se abordar brevemente um paralelo ao qual demonstre como tal lógica está imbricada e incide no fenômeno da medicalização no âmbito escolar nestes ambientes “antagônicos”.

A medicalização dos sofrimentos a partir da racionalidade neoliberal.

O termo medicalização trata-se de um processo amplo em que problemas não médicos se tornam tratados ou definidos como problemas médicos, em termos de doenças ou transtornos; para além disso, trata-se de remeter à dimensão privada questões da esfera pública (CONRAD, 2007; MOYSÉS, 2001). De acordo com o movimento social Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, tal conceito: “envolve um tipo de racionalidade determinista que desconsidera a complexidade da vida humana, reduzindo-a a questões de cunho individual, seja em seu aspecto orgânico, psíquico, ou em uma leitura restrita e naturalizada dos aspectos sociais”. Ressalta-se ainda que a medicalização envolve processos mais amplos e complexos que não se restringe somente ao medicamento e possui uma lógica mais sutil e perversa de controle da vida das pessoas e da sociedade.
No âmbito escolar, Moysés e Collares (1994), discutem sobre a massificação das “doenças do não aprender”. Isto é, consolida-se a compreensão de que problemas referentes a escolarização seriam de responsabilidade individual, proveniente de disfunções/transtornos cerebrais. Em pesquisa (1994) com profissionais da saúde e da educação, as autoras identificaram que todos relegam à escola e ao sistema escolar enquanto secundários na discussão do fracasso escolar, e são unanimes ao afirmarem que tal problema seria próprio (em seu aspecto biológico) dos estudantes.
Para compreender como a escola contemporânea contribui para esse processo parte-se da análise da lógica neoliberal enquanto um tipo de racionalidade que cada vez mais individualiza aspectos sociais e políticos. Nesse sentido, Foucault, sobretudo, em O nascimento da biopolítica (1978-1979), afirma que o neoliberalismo emerge enquanto resposta a política keynesiana, os tratados sociais pós Segunda Guerra e o crescimento da administração federal doravante o aparecimento de programas de auxílio econômico e social (FOUCAULT, 2008a). O autor também coloca que, não é somente pela contenção de gastos sociais que urge as respostas neoliberais, mas que será muito mais que uma política econômica defendida por governos conservadores, visto que, para existir, precisa construir “um novo modo de ser e de pensar” (FOUCAULT, 2008a, p. 219), isto é, um novo modo de organizar as relações entre governantes e governados, pautadas em justificativas de liberdades individuais.
Ainda segundo Foucault (2008a), há dois mecanismos essenciais que articulam o discurso neoliberal, seriam eles – a teoria do capital humano [1]e as teorias constituídas ao redor da criminalidade, do delito e delinquência. Tudo passa a ser aludido por meio da lógica empresarial, de concorrência. Neste sentido, tal lógica passa a conferir um princípio de inteligibilidade para toda esfera da vida humana.
Desse modo:
Este princípio permite reduzir e limitar investimentos sociais em áreas cujo lucro não é imediato ou garantido, tais como educação, saúde, direito, prevenção ou combate à delinquência, além de tantas outras. Mas esse mesmo princípio também é aplicado em âmbitos pessoais permitindo assim uma análise econômica de processos antes considerados não econômicos, sejam relações ou comportamentos, que passam a ser observados a partir de uma espécie de análise economicista do não econômico. Esse investimento excede o campo educativo e se amplia para o âmbito dos valores desejados, dos comportamentos e das emoções consideradas imprescindíveis no mundo empresarial, como a inteligência emocional, a tolerância às adversidades, o controle de sintomas de ansiedade e depressão, a criatividade, o espírito concorrencial, entre tantos outros cotados pelo mercado (CAPONI; DARÉ, p. 305, 2019).
 
De acordo com Dardot e Laval (2016), essa autorresponsabilização objetivou-se em uma técnica de construção de um: “eu produtivo, especialista em si mesmo, como resultado da interiorização de coerções, que transformam o sujeito em um “instrumento ótimo de seu próprio sucesso social e profissional” (p.350). A medida em que tudo passa a ser tratado pela concorrência entre os sujeitos, a liberdade é transposta para obrigação da produtividade, e tudo é voltado para responsabilidades individuais. As condições sociais são mitigadas, fica cada vez mais intrínseco as esferas pessoais e profissionais, ou seja, a ideia de que para ser “bem-sucedido” na vida pessoal, consequentemente, é preciso obter sucesso profissionalmente, o que reitera a lógica da individualização neoliberal.  
Como resultado, coloca-se um tipo de trabalho que não somente enfraquece o senso coletivo, como também, dissemina a lógica da flexibilização, exemplo do que hoje é conhecido como uberização do trabalho[2] – contratos temporários, individualização das responsabilidades, fixação em metas etc. Esse novo modelo organizacional do trabalho necessita criar estratégias de autorresponsabilização nos indivíduos. Desse modo, cada trabalhador torna-se exclusivamente responsável por seus êxitos e fracassos, desconsiderando contextos sociais de formação e de existência. Esses indivíduos passam, portanto, a serem responsáveis por suas escolhas, incorporando a ânsia concorrencial de sempre alcançar um alto desempenho produtivo individual, em detrimento dos coletivos (CAPONI; DARÉ, 2019)
 
Seguindo esta perspectiva, a educação, passa a ser fundamental, com capacidade de propiciar o desenvolvimento de capital humano, bem como, inculcar nos indivíduos o consumo deste capital. Dardot e Laval (2016), apresentam as consequências subjetivas desta lógica concorrencial, a qual glorifica discursos de incerteza, flexibilidade, convertendo os laços sociais em relações de interesses empresariais.
Assim, o sujeito empresarial, cuja características marcantes consistem então na individualização e na concorrência, vai ficando cada vez mais alheio ao senso coletivo, aos direitos políticos comuns. Por conseguinte, a perda de direitos sociais e os desmanches na esfera pública passam a ser cada vez mais naturalizados, a efemeridade e a precariedade nas relações sociais, de trabalho, tornam-se pautadas na noção de que todos devem assumir e correr riscos. Destarte, todo fracasso pessoal nesta noção meritocrática, terá como culpado a falta de investimento no próprio capital humano, tudo passa a ser pensado a partir de custo-benefício. Como coloca os autores este “neosujeito” deverá ser um: “especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e assim, sobreviver na competição” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 333).
 Esta razão neoliberal, portanto, transfere situações públicas como desemprego, desamparo social, evasão escolar, à problemas inteiramente individuais fundamentado na lógica da liberdade, na autorresponsabilização. Dentro deste contexto, certos saberes como a psiquiatria e a neuropsiquiatria convergem com tal lógica, visto que, problemas sociais e coletivos que desencadeiam sentimentos adversos, isto é, tristeza, ansiedade, etc. sejam vistos como resultado essencialmente individual. Neste terreno fértil, será cada vez mais comuns tais problemas serem tratados sob o viés biológico, orgânico, defendido pelas ciências psi como decorrência de algum déficit neuroquímico, cujo tratamento seria, majoritariamente, o uso de medicamentos. Isto pode ser entendido como um recorte do processo de medicalização – a medicamentalização, o ato de prescrever fármacos aos problemas diagnosticados por profissionais destas áreas.
Se faz perceptível o aumento exacerbado de diagnósticos[3] como ansiedade, depressão, hiperatividade entre trabalhadores, estudantes. Pode-se entender que o processo de medicalização desencadeia várias estratégias de diferentes campos de saberes, que são funcionais à lógica do empreendedorismo, como é o caso da psiquiatrização dos padecimentos psíquicos. Em suma, as subjetividades engendradas nas relações pautadas nos princípios neoliberais são imbrincadas à gestão dos sentimentos. Isso significa que para obter sucesso, prestígio, neste contexto, pasme, é preciso tornar-se “máquina”, na medida em que demonstrar sentimentos insatisfatórios é colocado como sinônimos pejorativos.
Ao pensarmos isso no campo da educação, já na primeira infância, é evocado a aquisição de competências e habilidades pensadas em compensações futuras, ou seja, espaço substancial para constituição do capital humano como já era colocado pelos primeiros teóricos neoliberais – Shultz (1973) e Gary Becker (1962). A educação pauta na racionalidade neoliberal vai traçar novas vias, com o escopo de formar sujeitos dóceis e eficientes, avaliados por parâmetros que indiquem êxito e/ou fracasso, transformando as subjetividades dos avaliados para a lógica concorrencial, de performatividade (DARDOT; LAVAL, 2016).
Dessa forma, no que tange as problemáticas no âmbito de rendimento, dificuldades na aprendizagem que culminam no “fracasso escolar” são pormenorizados em grupos ou em indivíduos específicos, marcados pelo estigma do fracasso dentro deste espaço. Isto é, a compreensão de que os problemas de escolarização seriam, sobretudo, de cunho individual, de forma que esses sujeitos passam a ser entendidos e classificados, fundamentalmente, pelos seus desempenhos negativos ou não, na instituição (PATTO, 2015; MOYSÉS, 2001).

As múltiplas faces da medicalização vistas no documentário

Ao pensarmos nas realidades abordadas no documentário, é possível percebermos a complexidade e as diferentes vias do processo de medicalização dentro da lógica neoliberal. Analisando primeiro as escolas públicas e periféricas de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, temos condições sub-humanas de existência, seja dentro e fora da escola. Falta de estrutura, dificuldades na locomoção, salas lotadas, violência cotidiana, seja ela física ou simbólica, evasão de alunos, falta de professores. Em suma, um conjunto de condições adversas que desconsidera a totalidade das dimensões humanas nesta prática escolar, seja dos alunos, professores e funcionários.
Logo no início há um depoimento de uma aluna que diz: “às vezes acho violento, esse jeito como, sei lá, se vive, às vezes as pessoas realmente têm que deixar de lado o que elas acreditam para se conservar vivas assim” (01:40). Após isso, emerge o nome do documentário: Pro dia nascer feliz. Com isso já é possível perceber uma ideia que vai sendo construída ao espectador de que algumas existências são determinadas a se eximirem de sonhos, por exemplo, como se as suas condições fossem naturalizadas.
Os grupos sociais das escolas públicas se dividem em professores, jovens que não tem interesse em estudar, a grande maioria abordada no filme, e outros que gostam de ler e aprender. Ambos os casos demonstram de alguma forma uma culpabilização exclusiva nesses sujeitos – “Eu acho assim, quando um professor falta, graças a deus, assim, eu sou realista, gosto de ficar conversando com as minhas colegas, se divertindo”(19:42) – aluna da escola estadual Guadajara. Em contrapartida, há uma aluna (Valéria) que compõe o grupo minoritário apresentado: “Na escola os meus colegas me acham diferente porque eu gosto de ler (10:18) (…) Às vezes a professora manda eu fazer uma redação, esse tipo de coisa e faço. Só que na maioria das vezes, eles não consideram porque acham que não foi de minha autoria, não fui eu que fiz. Não, não dão nota boa porque eles acham que peguei de algum lugar, por algum autor, alguma coisa parecida, mas eles não acreditam que fui eu que fiz”(11:39). A falta de perspectiva é colocada pela própria diretora da escola: “eles (os alunos) quando são avaliados, com certeza seu conceito é insatisfatório. Ai os professores são obrigados a reverter a situação oferecendo uma oportunidade, ou seja, uma recuperação paralela, mas é tão restrita, são apenas três dias para todos os professores, para escola”. (12:50)
Isso posto, exemplifica e converge com a lógica e os discursos neoliberais, que também são percebidos através de outras falas. Ao ser indagado pelo documentarista se passaria de ano, Deivison (16), responde: “eu sou bom aluno, eu sou inteligente pra caralho, ninguém acredita em mim, ninguém tem fé em mim” (23:20). Fica nítido que não existem práticas e construções subjetivas capazes de dar sentido à vida desses estudantes, de modo que se sintam pertencentes e se reconheçam nestes espaços, à medida ainda que toda responsabilidade pelo seu desempenho, (além de ser desacreditada), desconsidera todo o contexto que os cercam. Como coloca Dayrell (2007):
 
Dessa forma, a relação dos jovens pobres com a escola expressa uma nova forma de desigualdade social, que implica o esgotamento das possibilidades de mobilidade social para grandes parcelas da população e novas formas de dominação. Neste caso, a sociedade joga sobre o jovem a responsabilidade de ser mestre de si mesmo. Mas, no contexto de uma sociedade desigual, além deles se verem privados da materialidade do trabalho, do acesso às condições materiais de vivenciarem a sua condição juvenil, defrontam-se com a desigualdade no acesso aos recursos para a sua subjetivação. A escola, que poderia ser um dos espaços para esse acesso, não o faz. Ao contrário, gera a produção do fracasso escolar e pessoa (DAYRELL, 2007, p. 1123)  
 
Este mesmo aluno, Deivison, diz que vai ao baile, pega a arma, passeia com a arma no baile porque é legal, porque as pessoas vão olhar para ele, vão respeitá-lo porque ele sabe segurar a arma. Uma das escolas de São Paulo apresenta o depoimento de uma aluna que matou uma colega a facadas dentro da escola. A justificativa relatada para o assassinato foi de que ela apenas adiantou a morte da colega e que, por ser menor de idade, em três anos estaria solta. Ela continua dizendo que fez isso na escola para que todos vissem.
Nesses exemplos, a criminalidade é vista como inerente à condição de ser jovem estudante de escolas públicas em regiões de pobreza, construindo para o espectador a ideia de que eles não têm grandes perspectivas, e que são indiferentes em estar presos ou soltos no contexto em que vivem. Um aspecto importante a ser observado nessa exibição, é de como os jovens são caracterizados como sendo resultantes desse processo de deterioração sociocultural e para o qual não restaria outra alternativa. Como se não fosse possível nenhuma alteração na condição estrutural, enfatizando a estigmatização e a autorresponsabilização dos mesmos.
Em se tratando dos professores, essa transferência para autorresponsabilização também fica evidente quando uma professora é indagada por quê falta do trabalho. “Olha, eu falto por cansaço, eu acho que ser professor e tá envolvido mesmo com a profissão, com eles, com os alunos e tal, é uma carga física e mental muito grande, é mais do que o ser humano pode suportar, porque é muito psicológico, sabe? Eu faço terapia uma vez por mês, eu tenho que ir no psiquiatra porque não dá, porque você se envolve com os problemas deles e nem sempre você tem o retorno (…) o papel do professor na sociedade ele é muito importante, só que ninguém dá essa importância, então quando você abandona o profissional ele tende a deixar pra lá, sabe? Acho que o professor perdeu a dignidade pra trabalhar”. (39:23)
Em contrapartida, o colégio de elite em São Paulo, denota a educação enquanto uma relação estritamente mercadológica, comercial. Ao contrário das escolas públicas mostradas anteriormente, apresentam sofrimentos inerentes à sua própria condição social. Assim, embora os estudantes gozem de uma excelente infraestrutura, e de todo suporte estrutural necessário, no sentido material, fica claro a ação neoliberal do capital humano, do fracasso ou sucesso ligado, intrinsecamente, a performatividade dos alunos.
 Como é visto a partir da fala de uma aluna… “Eu às vezes fico achando que as pessoas olham pra mim e falam ‘essa menina só estuda’, não sei, esse ano eu senti um pouco uma coisa, bom vou falar… de que menos meninos se interessaram por mim, é… não sei, senti que talvez tenha né?! Agora esse negócio dos meninos foi uma coisa que me pegou esse ano, você vê que eu to meio emocionada, porque assim, é.. eu tive namorados, eu sempre achei que eu era mais interessante, e esse ano, não sei.. eu fiquei com um menino o ano inteiro e eu falei, será que eu que to me desviando? Destoando muito, não tô valorizando as coisas, é.. não tô, sei lá, sendo muito mulher? Tô deixando um lado meu de lado? Isso é uma coisa que me pega de ser vista como uma menina que só estuda, e não é verdade, eu tenho a minha vida. eu nado, eu faço ioga, eu faço mil coisas, sei lá, mas eu realmente me dedico bastante pro estudo, eu agora no final do ano eu só tirei férias hoje, eu tava fazendo prova ontem. Por exemplo, agora tão ligando lá em casa porque um colégio grande, que é uma rede de escola bem grande, ta ligando lá em casa falando com a minha mãe, porque querem que eu vá lá com o meu boletim, querem que eu estude la ano que vem, querem que eu faça cursinho lá, querem que saia meu nominho no cartaz se eu passar na faculdade, porque eles me treinaram (…) (1:02:20) “e daí entra nisso, calma ai, eu to feliz aqui, eu acho que o importante da vida não é só isso. Eu quero estar livre para que se eu não quiser mais saber de estudar, eu não ter que estudar (…) A pressão é minha, eu me cobro muito né, eu exijo bastante, eu tenho disciplina assim sabe? Pras coisas, pra tudo assim, pro esporte, pra estudo, tudo eu me cobro uma disciplina (…)” (1:04:30)
Esses exemplos, embora demonstrem necessidades aparentemente antagônicas, culminam na estigmatização e na banalização dessas vivências. O que fica sugestível ao espectador é que a realidade social reproduz uma condição social e econômica sem possibilidades de mudanças e que já é suplantada na nossa própria concepção de configurações educacionais. Portanto, tornam-se potenciais para o processo de medicalização, porque cada vez mais os sujeitos presentes nestes espaços têm para si a culpabilização por seus sucessos, fracassos, sofrimentos, à medida em que as situações externas vão sendo naturalizadas como determinadas e acabadas.
 
Considerações finais

Essa discussão é extremamente importante, porque o número de crianças e jovens diagnosticados com transtornos como depressão, ansiedade, transtorno de oposição (TOD), e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), tem aumentado nos últimos 20 anos[4]. E é, fundamentalmente, no âmbito escolar que essa atribuição de diagnósticos ocorre inicialmente. Dessa forma, as inúmeras pressões sobre os jovens, incluindo a necessidade de destacar-se academicamente, ter boa aparência, assim como situações de pobreza, ruptura familiar, precariedade e falência educacional, corroboram para o aumento de casos de doenças mentais.
As pessoas são, incessantemente, incentivadas a resolver os problemas sociais por meio do uso de medicamentos, somado a multiplicidade de propagandas dessas drogas nos meios de comunicação. Assim, é fortalecida a ideia de benesses a tal uso, vale ressaltar que a indústria farmacêutica investe mais em marketing do que em pesquisa e desenvolvimento (RABELLO; CAMARGO JUNIOR, 2012)
Nesse debate de conceitos e termos, é importante demonstrar que o uso inapropriado ou irracional de medicamentos é um dos mecanismos de medicalização da vida, disposto como forma de “normalizar” as pessoas. Não se trata de banalizar a importância do medicamento em inúmeros tratamentos terapêuticos para vários tipos de doenças, entretanto, cabe elucidar que o uso desordenado e, muitas vezes, prescindível, atravessam a lógica do biopoder[5]. Discute-se a prevalência da visão biológica/médica, como majoritária para a resolução de problemas que referem ao processo de sociabilidade e da cultura, da qual somos, concomitantemente, produto e produtores.
Assim sendo, pode-se perceber que o princípio é semelhante para todas essas populações, isto é – o medicamento é visto como meio rápido e efetivo para a solução de problemas de diferentes origens. A cultura da medicalização convergente ao controle dos corpos em uma sociedade que anseia por funcionalidades práticas e flexíveis, ou seja, que se debruça à racionalidade neoliberal, tende a suplantar nas pessoas a ideia de que precisam se automedicar ou procurar um atendimento médico e/ou terapêutico para estarem produtivas, objetivando maior rendimento, estando alheias, muitas vezes, a dimensão dos riscos do tratamento farmacológico, e até mesmo da dependência física ou psíquica inerente ao uso desses medicamentos. Por conseguinte, resulta-se em uma das características do processo de medicalização: o que é considerado normal se transforma em algo patológico.
 
Referencias
 
ANTUNES, Ricardo; FILGUEIRAS, Vitor. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020.
 
BOURDIEU, Pierre. A essência do neoliberalismo. Le Monde Diplomatique, São Paulo, p. 10-13, fev. 1998
 
CAPONI, Sandra; DARÉ, Patricia. Neoliberalismo e sofrimento psíquico: A psiquiatrização dos padecimentos no âmbito laboral e escolar. Mediações – Revista de Ciências Sociais. 25. 302. 10.5433/2176-6665.2020v25n2p302. 2020
 
COLLARES, Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso. A transformação do espaço pedagógico em espaço clinico (a patologização da educação). São Paulo: FDE, 1994. p. 25-31 (Série Ideias, 23). Disponível em: https://midia.atp.usp.br/plc/plc0604/impressos/plc0604_aula01_ativPres_texto3.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
 
CONRAD, P. The Medicalization of Society. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2007
 
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
 
DAYRELL, J. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educ. Soc., Campinas, vol. 28, n. 100 – Especial, p. 1105-1128, out. 2007. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/es/v28n100/a2228100.pdf
 
FOCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.   
 
______. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes,
2008a.

MOYSÉS, Maria Aparecida A. A institucionalização invisível: crianças que não-aprendem na-escola. Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: FAPESP, 2001.
 
PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia (4ª ed). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015.
 
RABELLO, E.T.; CAMARGO JÚNIOR, K.R. Drug advertising: health as a consumer product. Interface – Comunic., Saude, Educ., v.16, n.41, p.357-67, abr./jun. 2012.
 


[1] Na opinião do autor, ela representa a reinterpretação em termos estritamente econômicos de um domínio que até então era considerado como não econômico. A economia passa a ser a ciência do comportamento humano. A sua função será, então, a análise do comportamento humano e da racionalidade inerente a tal comportamento: “A economia”, dirá Foucault: “não é mais a análise de processos, é análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade dos indivíduos […] A teoria do capital humano permite reintroduzir esses fenômenos [a educação, a criação dos filhos, a saúde etc.], não como puros e simples efeitos de mecanismos econômicos que ultrapassarão os indivíduos e que, de certa forma, os atarão a uma máquina imensa na qual eles não serão os amos; ela permite analisar todos esses comportamentos em termos de empresa individual, de empresa de si mesmo com investimentos e retornos (FOUCAULT, 2008a, p. 306-307) 
 
[2] “A chamada uberização do trabalho somente pode ser compreendida e utilizada como expressão de modos de ser do trabalho que se expandem nas plataformas digitais, onde as relações de trabalho são cada vez mais individualizadas (sempre que isso for possível) e invisibilizadas, de modo a assumir a aparência de prestação de serviços. (ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020, p. 32.)
 
[3]https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101764.pdf p.69;
 
https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/fevereiro/14/ERRATA-Livro-USO-DE-MEDICAMENTOS-E-MEDICALIZACAO-DA-VIDA.pdf
[4] Informações disponíveis em:
 http://medicalizacao.org.br/wp content/uplods/2015/06/NotaTecnicaForumnet_v2.pdf
               
[5]Trata-se de um termo criado por Michel Foucault para referir-se à prática dos estados modernos e sua regulação dos que a ele estão sujeitos por meio de uma: “explosão de técnicas numerosas e diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações” (FOUCAULT, 1999, p. 152)