Por Renato de Oliveira Pereira
No ano passado, a Cia. Los Puercos lançou a peça “Verme”, concebida por Luiz Campos, ex-militar da Aeronáutica e da Polícia Militar que procurou refletir sobre o seu processo de formação e atuação como profissional das armas. A peça mostra como o sonho de ser um militar, que Luiz nutria desde criança, espelhando-se no irmão mais velho, transformou-se em uma experiência desastrosa, repleta de violências físicas e simbólicas já no processo de formação.
No palco, Luiz Campos articula suas memórias com a imaginação para narrar sua história e possibilitar ao público a reflexão sobre como o sujeito militar é construído dentro de instituições militarizadas. Os xingamentos, humilhações e violências sofridos durante a formação têm a função de desumanizar os futuros agentes, incutindo neles um ethos guerreiro. Trata-se de inseri-los na lógica militar de combate ao inimigo, numa espécie de pedagogia da crueldade que leva os agentes a travar uma guerra contra a população que, em tese, deveriam proteger e garantir a segurança. Só há duas alternativas: matar ou morrer, mas “é melhor a mãe do bandido chorar do que a minha mãe” – como se diz na peça.
Várias aspectos da formação e do cotidiano de trabalho de um militar são problematizados no espetáculo, como a própria questão financeira que uma carreira de tipo militar parece aliviar, o forte apelo à masculinidade nessas instituições, as periferias e os jovens negros como alvos privilegiados das ações policiais, bem como uma relação fetichizada com a farda: ao vestir uniforme, deixa-se de ser um “civil qualquer” e passa-se a ser uma autoridade, alguém com poder. Isso leva também a uma dissociação da personalidade, como se os agentes tivessem uma vida dupla (com a farda e sem a farda), comportando-se diferentemente dentro e fora do trabalho. Tal fato levanta a questão: qual “eu” é o verdadeiro?
É interessante destacar que Luiz não é complacente consigo mesmo, mas procura apresentar as atitudes problemáticas que ele próprio desempenhou enquanto policial. Ele não esconde a sua responsabilidade, nem tenta se proteger por meio de uma justificativa qualquer, tal como “eu apenas cumpria ordens”, “apenas fiz o meu trabalho” – subterfúgio utilizado por agentes militares pelo menos desde os algozes nazistas. Pelo contrário, o protagonista procura apontar seus falhas e problematizar as situações em que foi conivente com ações flagrantemente ilegais. Essa sensibilidade e capacidade de reflexão geraram muito sofrimento a Luiz, mas foi o que lhe possibilitou escolher não seguir numa carreira que apenas levava à destruição dos outros e de si mesmo.
Muitos policiais sofrem as consequências de sua profissão em sua saúde mental. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, o suicídio tem sido a maior causa de morte entre os policiais brasileiros, com incidência 8 vezes maior em relação à população em geral. Mas Luiz Campos buscou transformar todo esse sofrimento e conflito interno em arte, em uma peça de teatro que nos faz refletir sobre o nosso cotidiano violento e as heranças autoritárias que, a despeito do fim do regime civil-militar, continuam a operar em toda a sociedade brasileira, sobretudo em instituições militarizadas.
Se o uso da violência é defendido por muitos como uma forma eficaz de combater a criminalidade e impor a ordem, a desumanização dos “operários da violência” e número alarmante de civis mortos em confrontos demonstram claramente que segurança pública é um tema que precisa ser pensado de forma ampla, de modo a abranger não só o enfrentamento ostensivo, como também as questões sociais, incluindo o acesso à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho digno e ao lazer. As instituições militarizadas e seus processos de formação também precisam ser repensados, pois em uma sociedade democrática não há espaço para uma instituição que procura desumanizar seus agentes e utilizá-los para fazer guerra contra os cidadãos no contexto de uma política da morte ou, nos termos do filósofo camaronês Achille Mbembe, uma necropolítica contra os indivíduos mais vulneráveis da sociedade. Em verdade, é esse tipo mesmo de instituição, com seus modus operandi violento e autoritário, que coloca em risco a própria democracia e o Estado de direito.
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A peça “Verme” foi lançada em 2024 e teve três temporadas, contando com o financiamento da 42ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. No último dia 8 de agosto, foi lançado o documentário “Verme: memória e documento”, no Cine Bijou, em São Paulo. O filme documentário retrata o processo criativo da peça e, ao mesmo tempo, busca refletir sobre as questões levantadas pela obra, trazendo depoimentos dos próprios atores da Cia. Los Puercos e também de especialistas convidados, como este que vos escreve. O documentário pode ser visto gratuitamente, no canal da Cia. Los Puercos do Youtube. Direção, fotografia e edição de Isa Meneghini. Roteiro e argumento de Josemir Medeiros.
O Observatório de Segurança Pública da UNESP é um portal da Internet que procura facilitar acesso às informações sobre Segurança Pública no Estado de São Paulo.








