Por: Eduardo Armando Medina Dyna
Universidade Estadual Paulista – UNESP
A série “Irmandade” (2019) é produzida pela empresa de filmes e séries via streaming “Netflix”, pela direção de Pedro Morelli o responsável de produzir essa série. O conteúdo dessa produção é um drama que conta a narrativa de uma organização dos presos dentro do sistema penitenciário paulista. Segundo o diretor, a ‘facção’ “Irmandade” não teve um baseamento direto de uma facção da realidade, ou seja, a invenção da irmandade não tinha um alinhamento com qualquer organização dos presos que existe na vida real. Entretanto, o diretor afirma que para criar a organização, teve um estudo detalhado sobre a ética, normas, condutas e linguagens que muitos comandos utilizam nas suas próprias relações no Brasil. O intuito dessa resenha é justamente analisar, apontamentos intrínsecos entre a facção Irmandade e o Primeiro Comando da Capital (PCC).
O contexto do surgimento do PCC se insere com o fim da ditadura civil militar no Brasil (1964-1985), havendo ainda muitos resquícios da militarização herdados deste período, como o aumento da violência militarizada nas periferias e principalmente nas prisões, com casos de torturas, envenenamentos e mortes pelo braço armado do estado contra os presos. Diante disso, diversos casos marcaram revoltas dos presos e intensificam às políticas de segurança pública dos governos Oreste Quércia (1987-1991) e Luiz Antônio Fleury (1991-1995). O caso mais emblemático foi no dia 02 de Outubro de 1992, quando houve o maior massacre dentro dos presídios no Brasil.
Após uma rebelião no Pavilhão 9 do Carandiru, o então diretor José Ismael Pedrosa autorizou a PM de entrar na cadeia e ela reprimiu violentamente e assassinaram 111 presos segundo os dados do estado (porém segundo outras fontes o número é muito maior). A indignação e repulsa tomou conta por toda sociedade prisional, a sociedade civil e grupos de direitos humanos. Esse episódio foi fatal para a discussão de políticas de segurança pública em São Paulo, e suas consequências foram o afastamento do diretor para o presídio da Casa de Custódia de Taubaté, conhecida como “Piranhão”, protestos contra o governador do estado e mais ações pela busca de direitos dos presos.
Segundo as narrativas de estudiosos, o nascimento do Primeiro Comando da Capital se germe por esse contexto, a criação aconteceu oficialmente no dia 31 de agosto de 1993 no Piranhão, formada pela aliança de 8 detentos contra a punição dos agentes de segurança e da direção, após um conflito durante uma partida de futebol entre o “comando caipira” contra o “comando da capital”.
A partir de 1993 o PCC se expandiu e fortaleceu em diversas cadeias do estado, conseguindo confrontar o governo em várias oportunidades como a megarrebelião de 2001 e principalmente a segunda megarrebelião de 2006 com os “ataques de Maio”, provocando medo, pânico e um toque de recolher geral na maior cidade do Brasil. As guerras constantes entre o PCC e a PM viraram rotina, aumentando a violência quando os dois poderes entravam em guerra. Atualmente o comando está em praticamente em todas às unidades federativas do Brasil e em países vizinhos como o Paraguai e a Bolívia. A produção e circulação das mercadorias ilícitas, isto é, a maconha e a cocaína é o fator econômico que financia toda estrutura e faces do PCC, seja para amparar seus membros, familiares ou suas bases com auxílio para alimentação, saúde, transporte e advogados, estabelecendo legitimidade dessas populações com a organização ou para financiar seu exército e produzir mais lucro para manter sua estrutura e atuação estável.
Voltando para o conteúdo da série após essa breve contextualização do PCC, existe algumas aproximações da ficção com o real, a minha única crítica negativa sobre a série é o anacronismo da ficção com a realidade. O enredo se passa no ano de 1994 e alguns elementos como o tráfico de drogas estão mais naturalizados e organizados na sociedade. Saindo da ficção e entrando na realidade, o tráfico de drogas se organiza e estrutura apenas no início do século XX, portanto esse equívoco temporal é interesse para ser analisado.
O PCC tem alguns codinomes que os membros e próximos designam em suas sociabilidades, como “organização”, “comando”, “partido”, “família”, “irmandade” entre outros. Não é estranho que a facção da série tem o mesmo codinome do PCC. Essa aproximação também é notável se analisarmos os discursos produzidos pelos líderes da organização. O protagonista e líder da Irmandade de nome Edson Santos ou Edinho, figurado pelo autor e músico Seu Jorge, traz durante vários momentos a luta e união de todos os presos contra o linchamento, tortura, opressões e a busca constante pelos direitos dos detentos. É um discurso de luta, da sociedade carcerária contra os agentes do estado, dos presos contra a direção e eles almeja que cumpra a constituição. Esses discursos estão conectados com os breques[1], com às reivindicações dos presos e até no estatuto do comando. O ritual de batismo e grito de guerra de Irmandade é inspirado na vida real pelo PCC. Os gritos de guerra, o conteúdo pronunciado é como já dito, a base ideológica para motivar seus integrantes a lutarem contra as mazelas do estado.
A figura do personagem que administra a prisão referência um diretor que compactua e fornece tortura para os indivíduos presos. Historicamente esse elemento de tortura era comum nos presídios do Brasil. Há de se notar a semelhança do diretor da série com o diretor José Ismael Pedrosa, o mesmo que estava coordenando os presídios do carandiru (1992) e do Piranhão (1993) e viu germinar o PCC, conhecido pelos seus atos de suplício contra as suas vítimas.
Concluindo, Irmandade é um ótimo drama inspirados na realidade sobre o universo prisional. O conteúdo como visto, têm fortes aproximações com a organização Primeiro Comando da Capital e essa relação entre facção Irmandade e seus personagens mostra as dificuldades e problemas da sociedade urbana paulista. A série é uma boa indicação para quem quiser iniciar sobre a temática das facções no Brasil e suas esferas.
Perguntas
Existe relação entre polícia e PCC, principalmente no Estado de SP?
Existir uma relação sempre existe, a polícia e o PCC têm muito poder na nossa sociedade e eles sempre estão se digladiando, mas penso que é melhor analisar quem é essa polícia e o porquê têm relações de disputas com esse partido do crime definindo primeiramente quem são essa polícias, seus papéis e seu trabalho. No estado de São Paulo, as funções de polícia civil e polícia militar são diferentes. Falando bem brevemente e sintetizando, cada uma delas tem atribuições diferentes, tendo a primeira o objetivo de investigar e solucionar casos e a segunda de policiar e monitorar os territórios e às pessoas em sua volta. Para ter um conhecimento maior sobre esse tema, eu aconselho a lerem o livro “Controle dos crimes e seus apoiadores (2018)” de Giane Silvestre. Para responder essa questão vou começar baseando pelos fundamentos dessa autora. Em âmbito institucional, a polícia militar têm muito mais poder do que a polícia civil, seja nos quesitos econômicos, políticos, bélicos, ideológico e até dos próprios indivíduos. Isso não aconteceu de um dia para noite, mas fez parte de todo processo das políticas de segurança pública que foram sendo implementadas a partir do final da década de 1980. Dessa forma, historicamente o patrulhamento da PM nas ruas de São Paulo trouxe muita repressão e ataques principalmente para às classes populares que se encontram em periferias. O PCC que foi criado a priori nas cadeias de São Paulo, teve seu poder também transportado para as periferias, controlando esses territórios para atingir seus objetivos. Como o PCC está inserido também nessas periferias e a PM têm uma atuação recorrente e arbitrária, os confrontos são inevitáveis, assim a relação de guerra entre ambos é muito mais constante do que com a polícia civil. Esta última por exemplo, têm o objetivo de investigar e apurar denúncias e planos da organização, dispondo de uma posição que não têm um confronto direto. Há também, relações de corrupção entre a polícia e o PCC, sendo segundo as pesquisas e inquéritos, mais comum da polícia civil do que a militar. Mas posso concluir que é uma relação de guerra entre esses dois poderes [PCC e a Polícia], ocupando objetivos e funções diferentes que não são relações amistosas.
Explique o caráter neoliberal do PCC com semelhanças ao Estado capitalista.
É muito interessante analisar o PCC por esse caráter neoliberal. Algumas pesquisadoras como a Karina Biondi em sua dissertação “Juntos e Misturados: Imanência e transcendência no PCC (2009)” aponta um tipo de PCC, como se fosse uma empresa. E se formos analisar o comando, de fato têm sua função empresarial. Mas penso que devemos primeiro historicizar a organização, para encontrarmos a ruptura que foi construída o “PCC empresa neoliberal”. Quando teve a reconfiguração da estrutura interna e dos seus objetivos para manter vivo o PCC em meados de 2002, houve uma forte mudança, com a expulsão e o decreto dos antigos líderes (Geleião e Cesinha). Daí o comércio de drogas começa aparecer como um objeto forte e mais seguro do que as outras ações que a organização vinha fazendo até então para manter e financiar a sua organização. O tráfico de drogas é muito mais lucrativo, mais seguro e rende muito mais poder para o PCC, a partir de 2002 o comando começa a se “empresariar”. Estratégias, rotas, produções, comércio, todos esses elementos começam ser visados pelo PCC, para enriquecer e aumentar seu poder, construindo teias e conexões que superaram as fronteiras do estado de São Paulo, as fronteiras do Brasil e até o oceano atlântico. Atualmente a organização têm base internacionalmente nos seus propósitos de tráfico de drogas e ela têm legitimidade nos seus próprios territórios que domina. É muito confuso falar que uma ‘organização criminosa’ têm legitimidade. Várias pesquisas apontam para isso, mas o mais interessante é que o PCC começa adentrar desde o começo da sua história no vácuo do poder em que o estado [neoliberal] deixava de cumprir. Isto quer dizer que, o comando fazia e cumpria coisas que os governos não faziam, nas periferias os moradores precisam de assistência, seja com comida, saúde ou lazer e o PCC fornecia isso, com cestas básicas, ajuda de médicos e festas para crianças em datas festivas. Nas cadeias essa ajuda é maior por causa das condições, como em assistência jurídica, ajuda para conseguir remédio, comer uma comida melhor, o transporte para a família dos presos visitarem o ente querido na cadeia. Outro exemplo é autogestão dos presos nos territórios em que eles mesmo dominam, tendo o preso exercendo a função que os agentes penitenciários têm, como de fazer o levantamento dos detentos ou ajudar na cozinha e limpeza. Se formos pensar nessa ótica, o PCC é uma empresa neoliberal fazendo um serviço terceirizado que reduz custos ao estado e aumenta o seu próprio poder.
Sabendo que o PCC realiza funções que teoricamente seriam incumbência do Estado democrático, é possível considerar a partir disto, que seja uma ameaça à democracia ou uma forma de resistência a falsa democracia estatal?
Vejamos, penso que essa pergunta pode ser afirmada pelos dois questionamentos, tanto do PCC se tornar uma ameaça a democracia liberal, que fique bem clara isso, mas também é uma resistência dessa falsa democracia e suas políticas do estado que não atendam toda a sociedade, mas privilegia poucos em detrimentos de muitos. Respondendo a primeira hipótese, como que a organização se estabeleceu um monopólio de violência tão forte que bate de frente com o estado, isto é, é capaz de guerrear igual aconteceu em 2006 em São Paulo, com uma forte ameaça ao status quo da nossa frágil democracia. Ele [PCC] está presente em diversas camadas e setores da nossa sociedade, auxiliando e cumprindo papéis que hora deve ser encabeçado pela ação estatal, ou em tempos de neoliberalismo, por empresas privadas, se bem que o PCC é uma empresa privada. Desta forma, o PCC começa a se tornar ameaça a essa democracia a partir do momento que seu poder e planejamento for ameaçado, igual ocorreu em Maio de 2006. As prisões de membros do PCC são positivas para aumentar e concentrar seu poder em seus territórios e não uma forma de conter os objetivos dessa organização. A resistência a essa falsa democracia se dá pela sua própria atuação e a legitimidade de setores da sociedade com a organização, principalmente de indivíduos que estão em seus territórios como as periferias, pela ajuda social e a ‘falsa’ promessa de proteção e resolução dos conflitos cotidianos. Os discursos contra os governantes do estado, às classes dominantes e a elite do Brasil são um combustível ideológico que prevalece no PCC e corrobora para uma luta de resistência contra às arbitrariedades do estado brasileiros. Portanto eu analiso o PCC como uma ameaça ao status quo da democracia liberal, mas também uma forma de resistência para ajudar aqueles por aqueles quem eles lutam. Lembrando que há diversas faces do PCC, o PCC jurídico, o PCC político, o PCC empresarial e o PCC social. Estou apontando apenas uma face dessa complexa rede de sociabilidade e organização que se constrói ao nome de Primeiro Comando da Capital.
Onde há poder há resistência: você acredita que a resistência do PCC durante a criação das RDD foi uma previsão proposital do Estado?
O PCC já nasce com o caráter de resistência, a própria fundação do comando foi um pacto entre 8 presos que iriam resistir contra às punições da casa de custódia de Taubaté é um exemplo disso. Ser preso e sobreviver em um sistema que os direitos que não são cumpridos é um ato de resistência. A criação do regime disciplinar diferenciado (RDD) ocorre após a primeira megarrebelião de 2001 gerando uma derrota política para o governo do PSDB e uma crise na segurança pública em São Paulo. Eu não avalio que o estado soubesse que os irmãos iriam se rebelar. Primeiramente, as histórias e às teorias sobre o fenômeno do PCC na segurança pública começam a ser trabalhado e discutido principalmente após 2006. Então naquela época nem o estado nem a sociedade civil sabia dessa essência de resistência da organização. Devido ao histórico, a resistência era sinal dado no RDD e os objetivos de tentar controlar e destruir a organização nesse regime diferenciado não foi provado, mas pelo contrário, as políticas de interiorização para afastar os líderes da organização pelo interior caipira paulista trouxe um efeito contrário. Essas políticas, portanto, não contiveram o poder da Organização, mas ampliou para outros locais, expandindo seu poder. É correto afirmar que o estado ampliou a influência do PCC por todo estado e indo além, transferindo para outras unidades federativas.
Existe alguma atuação do PCC nas penitenciárias femininas?
Existe. As mulheres também têm uma função no PCC, porém elas não são iguais às funções dos homens. O machismo estrutural está fundamentado no comando, que nada mais é um reflexo da nossa sociedade. No começo, as companheiras dos membros do PCC tinham alguns objetivos fora das penitenciárias e exerciam alguns cargos de poder. Após a reconfiguração da organização eu não sei se há mulheres nas sintonias (direções do PCC) ou que exerçam algum posto alto de poder do comando. Mas de fato, há uma presença feminina no PCC e mulheres como irmãs [membros] do comando nas penitenciárias do Brasil.
O que é o 1533?
O PCC tem como seu símbolo a figura do Yin/Yang e o número 1533. A figura trazida da filosofia e religião oriental significa o equilíbrio, e foi incorporada ao PCC. Já o 1533 é uma explicação bem simples, quando foi criado o PCC lá em 1993 no Piranhão (Taubaté), eles utilizaram de uma forma de ‘numerologia’ usando um significado dos números pelo alfabeto. Ou seja, a letra P no alfabeto é a décima quinta (15º), já a letra C é a terceira letra do alfabeto, ficando, portanto, 1533 = PCC – 15 (P), 3 (C) e 3 (C). Lembrando que a partir de 2009 pelas mudanças da língua portuguesa no Brasil foi inserido as letras K, W e Y, totalizando 26 letras e modificando o significado 1533. Mas devemos lembrar da nomenclatura 1533 PCC em 1993.
Há um caráter higienista no PCC?
Se formos analisar o caráter higienista como uma eliminação de qualquer forma de oposição nos territórios do PCC isso existe, e existe muito forte nas dimensões do comando. Já o caráter higienista de uma limpeza étnica cultural por meio de uma condição biológica claramente o PCC não é higienista. Os membros do PCC, ou melhor, o Sujeito “PCC” é composto por indivíduos que estão mais marginalizados na sociedade, que estão em condições de moradia e trabalho insalubre e foram submetidos a entrarem no ‘mundo do crime’, mesmo que essa definição ‘mundo do crime’ é bastante complexa e que devemos analisar com calma outra hora. Então os membros do PCC compõem um sujeito que é o mais marginalizado, uma espécie de “lumpemproletariado” como Karl Marx diria ou fazem parte da “Ralé” como Michel Foucault define. Penso que há apenas um fato sobre uma forma de higienização que ocorreram contras homossexuais que estavam presos. Historicamente, os detentos gays sempre foram deixados de lado, sofrendo abusos, estupros e agressões por terem uma orientação sexual diferente do restante da sociedade carcerária, tornando-se um sujeito a margem dos mais marginalizados dentro dessa margem marginal. Fica até redundante comentar sobre isso, mas se formos pensar que os homossexuais presos estão além dessa margem é de observar que houve um fator de higienização nas cadeias e o PCC em primeiro momento vivenciou isso. Porém, houve algumas mudanças impostas pelo PCC nas normas e condutas dentro da ética do crime diminuiu essa violência contra os presos homossexuais, mas isso não quer dizer que eles ainda não estão marginalizados. Por estar nessa condição, agora lembro apenas desse caráter higienista nos aspectos biopsicossocial. Outras formas de eliminação de indivíduos têm o caráter político ou que fere a ética do crime. Começando por essa última, quando um preso ou um morador da periferia quebra uma regra das normas do PCC ele será severamente punido. Os casos mais comuns são por parte de estupradores, pedófilos e caguetas [informantes] que quebram a moral dessa teia de sociabilidade e são eliminados [mortos] ou afastados com graves condenação que a organização determina para os infratores da lei do PCC. Já o caráter político é sobre outras organizações e policiais, que disputam e lutam nos mais variados fins. É importante frisar que analiso o PCC como uma organização política, por toda a sua atuação, estrutura, funcionamento e papel na sociedade brasileira.
[1] Os breques são gritos e cânticos coletivos de um grupo social.
Mestrando do Programa de pós graduação em ciências sociais (stricto sensu) na Universidade Estadual Paulista (UNESP) - campus de Marília, na linha 1: Pensamento Social, Educação e Políticas Públicas (2021-2023). Foi bolsista FAPESP, produzido uma pesquisa sobre as disputas de poder entre o PCC e a PM na chacina de 2015 em Osasco (2020).