Diretor de fotografia: Gunnar Fischer

Um olhar cinematográfico sobre “A história da Loucura”: “O sétimo selo”


Um olhar cinematográfico sobre “A história da Loucura[1]”: “O sétimo selo[2]

Em sua tese de doutorado, Michel Foucault, a partir de uma reconstituição arqueológica, enuncia os diversos discursos sobre o que convencionou chamar de loucura. Entende-se que não há uma unidade linear sobre a loucura. Esta foi objeto de diversas interpretações e saberes, até o momento em que se tornou objeto específico do saber-poder psiquiátrico, engendrando a loucura na categoria de doença que deve ser observada, tratada e medicada.
Para compreender os diversos discursos que rodearam a loucura no decorrer da história ocidental, Foucault amplia seu horizonte, de forma a analisar diversas fontes de registros que solidificam os discursos da época. Aqui, semelhante à Foucault, não voltamos nossos olhares somente às produções científicas para dissertar sobre a referida obra; ao contrário, observamos na sétima arte a representação dos diversos discursos sobre a loucura.

“E, havendo o Cordeiro aberto um dos selos, olhei, e ouvi um dos quatro animais, que dizia como em voz de trovão: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele tinha um arco; e foi-lhe dada uma coroa, e saiu vitorioso, e para vencer.”

(Apocalipse 6:2)

O sétimo selo e o saber escatológico do louco na “idade média”

“E, havendo o Cordeiro aberto um dos selos, olhei, e ouvi um dos quatro animais, que dizia como em voz de trovão: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele tinha um arco; e foi-lhe dada uma coroa, e saiu vitorioso, e para vencer.”

(Apocalipse 6:2)

Angustiado e ludibriado, traído e desiludido, Antonius Block regressa à sua terra após 10 anos nas cruzadas onde, em nome e em defesa de Deus, sangrou e fez sangrar. Abandonado por Deus, se depara com a morte: sua hora havia chegado. Seu corpo, há muito, estava pronto para esse momento, mas ele temia o vazio, temia mais que tudo. Não era capaz de se conformar com uma morte sem justificativas, sem maiores explicações; em último grau, não aceitava padecer sem antes conhecer: conhecer o porquê da carnificina, o porquê do abandono e castigo de Deus, o porquê da ausência de respostas. Assim sendo, desafia a morte para uma partida de xadrez. Enquanto ele resistir, vive; se, por um acaso, vencer, a morte o abandona.
Nos é possível identificar o indivíduo Cartesiano em Block, por mais que sua própria época ressoe em suas angústias. A partir das desilusões religiosas propiciadas pelas cruzadas, a partir da falta de respostas para sua empreitada, o saber, a razão, o conhecimento, é tudo que lhe motiva a continuar. Não pode abandonar esta terra sem respostas. Contudo, por mais que seja orientado pela razão, este não a vê como contraposição de outras formas de saber. Clama por Deus e pelo Diabo, estende a mão a uma bruxa; enfim, tenta, por todas as vias, por todos os saberes, encontrar uma resposta que apazigue seu espírito.

“E, havendo aberto o segundo selo, ouvi o segundo animal, dizendo: Vem, e vê. E saiu outro cavalo, vermelho; e ao que estava assentado sobre ele foi dado que tirasse a paz da terra, e que se matassem uns aos outros; e foi-lhe dada uma grande espada.”

(Apocalipse 6:4)

A história se desenvolve com Block e seu escudeiro em uma viagem de volta à casa. No caminho, fazem amigos, presenciam horrores e se defrontam com a peste. A morte persegue não só nosso personagem principal, mas assola todo o continente Europeu, causando horrores na população, que via na doença um castigo divino e o motivo de se purificarem através de rituais como auto chicoteamento ou queima de bruxas. Block e Jons, contudo, observam toda a situação com um certo distanciamento e questionamento, uma vez que estes já haviam sido abandonados por Deus há tempos.

“E, havendo aberto o terceiro selo, ouvi dizer ao terceiro animal: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo preto e o que sobre ele estava assentado tinha uma balança na mão. E ouvi uma voz no meio dos quatro animais, que dizia: Uma medida de trigo por um dinheiro, e três medidas de cevada por um dinheiro; e não danifiques o azeite e o vinho.”

(Apocalipse 6:5-6)

Vemos em Block e em Jons a razão moderna. Contudo, o personagem que mais nos interessa é Joseph, o acrobata; o ator; o bobo; o louco. Na cena em que Joseph nos é apresentado ele fala com os animais, da cambalhotas e então, tem uma de suas várias visões que ninguém acredita: ele vê a virgem maria com o menino jesus. “Não é a realidade que você vê, mas de outro tipo”, diz ele à sua companheira, que lhe responde: “ainda bem que você ainda não é dado por um bobo”.

“A denúncia da loucura torna-se a forma geral da crítica. Nas farsas e nas sotias, a personagem do Louco, do Simplório, ou do Bobo assume cada vez maior importância. Ele não é mais, marginalmente, a silhueta ridícula e familiar: toma lugar no centro do teatro, como o detentor da verdade — desempenhando aqui o papel complementar e inverso ao que assume a loucura nos contos e sátiras.”

(Foucault, 2012, p. 19)

Não vemos como coincidência o fato de Joseph, o louco, o bobo, ser um ator. No decorrer do filme observamos algumas cenas onde os atores são satirizados e humilhados, como se fossem figuras desprezíveis. Na cena da taverna, o próprio Joseph ironiza sobre os atores[3]. No decorrer do filme, portanto, o bobo, o louco, representado por Joseph, ainda não é uma figura que é posta como detentora da verdade. Interpretamos que o filme, devido ao sem fim, marca a ruptura sobre o discurso que ronda a loucura, entrando na fase onde o bobo “assume cada vez mais importância”.

“A Loucura também tem seus jogos acadêmicos: ela é objeto de discursos, ela mesma sustenta discursos sobre si mesma; é denunciada, ela se defende, reivindica para si mesma o estar mais próxima da felicidade e da verdade que a razão, de estar mais próxima da razão que a própria razão.”

(Foucault, 2012, p. 19)

No fim das contas, por maiores humilhações que eles sofriam, por mais que a morte os rondasse como assombrava a todos, todas as cenas alegres o envolvia. Em suma, onde há felicidade, há Jof como figura central. Nos poucos momentos de paz do filme, onde a morte não persegue Block, este de certa forma inveja a vida de Jof e de sua companheira Mila ao desfrutar de amoras e leite fresco, eternizando em suas memórias este solene momento. Enquanto Block se atormenta com a falta de respostas e de sentido, Jof aproveita a vida, se aproxima da felicidade. Quem, no fim, está mais próximo da razão?

“Mas o que existe no riso do louco é que ele ri antes do riso da morte; e pressagiando o macabro, o insano o desarma. (…)a loucura dos homens consistia em ver apenas que o termo da morte se aproximava ”

(Foucault, 2012, p.21)

Joseph, mais que ninguém, tinha consciência do termo da morte. Suas visões não eram ilusões, era um dom que lhe dava acesso ao conhecimento. Seus sentidos não eram um engano, como argumenta Descartes, e tampouco ele chega ao conhecimento a partir da razão. Aqui, a loucura não é uma desrazão, como o é em Descartes e mesmo na modernidade, mas é uma forma de saber; as visões de Jof são um presságio que lhe alertam do fim escatólogico que acomete a civilização.

“E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra.”

(Apocalipse 6:7-8)

Após longas jornadas, antes de uma tempestade, Block e a morte dão continuidade ao seu jogo. Após tomar a rainha de Block, a morte coloca o cavaleiro em Xeque, anunciando que em seu próximo encontro levará ele e seus amigos que o acompanham. Eis, então, a visão do louco, o presságio escatológico que lhe salva: Jof num susto vê o jogo entre a morte e Block. Avisa Mila de sua visão, que vê o cavalheiro sozinho. Nesse momento, Joseph sabe que é hora de partir, de fugir da morte e de suas visões. Block ainda ajuda a fuga dos colegas ao distrair a morte.

“E, havendo aberto o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por amor da palavra de Deus e por amor do testemunho que deram. E clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra? E foram dadas a cada um compridas vestes brancas e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo, até que também se completasse o número de seus conservos e seus irmãos, que haviam de ser mortos como eles foram.”

(Apocalipse 6:9-11)

Block e seu grupo de amigos finalmente chegam a seu destino, o castelo de Antonius. Sua companheira, que o esperou por 10 anos, após grande momento de felicidade, preparou um lanche para os viajantes. Sentados à mesa, acompanhados da leitura do apocalipse, a porta bate: eis a morte. Em fila, todos se apresentam maravilhados ao visitante desconhecido, sabendo, de alguma forma, de quem se tratava. Ao fundo, Block em prantos, desacreditado que seu tempo acabou, que não conseguiu o que buscava, que não obteve respostas, que veio em vão à terra e em vão tornará às cinzas; só lhe resta rezar. Jons, seu escudeiro, diz-lhe “Na escuridão onde você diz estar, não há ninguém para ouvir suas lamentações.” fazendo lembrar a cena onde, nos olhares da bruxa em chamas, Block não vê Deus e nem o Diabo: tudo que há é o vazio. Por fim, a muda fala “Está tudo acabado”.

“E, havendo aberto o sexto selo, olhei, e eis que houve um grande tremor de terra; e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue; E as estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte. E o céu retirou-se como um livro que se enrola; e todos os montes e ilhas foram removidos dos seus lugares. E os reis da terra, e os grandes, e os ricos, e os tribunos, e os poderosos, e todo o servo, e todo o livre, se esconderam nas cavernas e nas rochas das montanhas; E diziam aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós, e escondei-nos do rosto daquele que está assentado sobre o trono, e da ira do Cordeiro; Porque é vindo o grande dia da sua ira; e quem poderá subsistir?”

(Apocalipse 6:12-17)

Para Jof, Mila e Michael, a tempestade passou e a luz chegou, os pássaros cantaram e a vida triunfou. Eis a última visão que Jof compartilha conosco: “Eu os vejo, Mila! Bem alí sobre o tempestuoso céu. Estão todos ali: o madeireiro e Lisa, o cavaleiro, Raval, Jons e Skat. E o rígido mestre morte convida-os a dançar (…) Eles se distanciam da aurora, numa dança solene… para longe, para as terras da escuridão”. Jof visualiza a danse macabre, que fora retratada outrora pelo pintor e é também referenciada constantemente por Foucault em A história da Loucura. A dança da morte representa a materialização dos sete selos, onde todos, seja pela guerra ou pela praga, padecem às trevas. Jof, contudo, no auge de sua “loucura”, fez escapar da dança e fugiu da morte ao prever seus passos.

“E, havendo aberto o sétimo selo, fez-se silêncio no céu quase por meia hora.”

(Apocalipse 8:1)

A obra de Bergman nos dá uma bela representação visual do que é a loucura na idade média, tratada por Foucault em sua tese de doutorado. Jof, nosso louco, é detentor de um saber diverso, não de uma desrazão. É interessante observar como a morte persegue as personagens neste filme, e como cada uma reage. Block, um homem esclarecido pela razão, um intelectual e poeta, tenta fugir da morte justamente pela razão, representada no Xadrez. Contudo, é o louco, a partir de seus presságios, que de fato engana e foge da morte. Tudo o que Block encontra é o vazio, a falta de respostas. Quando a bruxa está para morrer, Jons diz: “Quem irá olhar por aquela criança? Os anjos? Deus? Satã? O vazio? Sim, o vazio meu senhor. Olhe nos olhos dela: sua pobre mente está fazendo uma descoberta. Vazio!”. Outra cena que o vazio lhe atormenta é no momento em que a morte anuncia o xeque à Block, onde ele a pergunta: “Você irá revelar os seus segredos?”. A morte, em sua completude, lhe responde: “Eu não tenho segredos. Não tenho conhecimento”.
As semelhanças entre Jof, o louco de Bergman, e a descrição de Foucault, não são meras coincidências. O sétimo selo foi lançado em 1957 e, 4 anos depois, Foucault publica a história da loucura, em 1961. É interessante ressaltar que, nesse intervalo, Foucault passou algum tempo na Suécia, país de Bergman. Teria Foucault assistido o sétimo selo? Teria ele se inspirado, em alguma medida, na obra de Bergman? Não saberemos. O que nos cabe é teorizar que as semelhanças entre as obras refletem que, definitivamente, a história da loucura não é singular; que os saberes e os discursos que rodearam a loucura na história são diversos, e que, por fim, o saber-poder psiquiátrico, suas tecnologias de sujeição, são invenções modernas. A loucura não é uma doença, ela foi tornada uma doença a partir do saber psiquiátrico, a partir da razão iluminista, que engendrou a loucura para fora da racionalidade.

Referências:

BÍBLIA. Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1996.
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2012.
O sétimo selo. Ingmar Bergman. Suécia: AB Svensk Filmindustri, 1957.
SILVA, Hélio de Menezes. Sola scriptura, 2011. Disponível em: https://solascriptura-tt.org/EscatologiaEDispensacoes/Recapitulacoes-7Selos7Trombetas7TacasApocalipse-Helio.htm. Acesso em: 25 de setembro de 2023.

Notas:
[1] Tese de doutorado de Michel Foucault, 1961[1] Ingmar Bergman, 1957
[2] Ingmar Bergman, 1957
[3] Também nesta cena, Joseph é posto a imitar um urso para que Raval não lhe bata. “Alguns carcereiros tinham grande reputação pela habilidade com que faziam os loucos executar passos de dança e acrobacias, ao preço de algumas chicotadas.” (Foucault, 2012, p.164)

Como citar:

RAMIRO, Felipe Castelleti. Um olhar cinematográfico sobre “A história da Loucura”: “O sétimo selo”. Observatório de Segurança Pública, São Paulo, 26 de set. de 2023. Disponível em: <https://www.observatoriodeseguranca.org/pesquisadores/um-olhar-cinematografico-sobre-a-historia-da-loucura-o-setimo-selo/>. Acesso em: xx de xxx. de 20xx.

Licenciado em Ciências Sociais pela UNESP (FFC - Câmpus Marília). Foi bolsista do grupo PET (Programa de Educação Tutorial) de Ciências Sociais entre os anos de 2020 e 2023.  Atualmente é bacharelando em Ciências Sociais pela mesma universidade e desenvolve PIBIC de forma voluntária, cujo título da pesquisa é "O consumidor e os games, uma relação mediada pelos itens de consumo: Fortnite, um estudo de caso."; é também monitor da disciplina de História do Brasil 2, ministrada pelo Prof. Dr. Paulo Eduardo Teixeira.