Eduardo Armando Medina Dyna1
Introdução
Na última quinzena de 2024, um triste acontecimento ocorreu na cidade de Jijoca de Jericoacoara, no litoral do Ceará, que comoveu a opinião pública e trouxe debates nas agências de notícias e redes sociais. Um adolescente foi sequestrado e assassinado por um grupo de pessoas da região de Jericoacoara, causando espanto e forte repercussão pelo grau de barbaridade da situação. A motivação foi a ação do adolescente que fez símbolos e sinais com a mão em fotografias nas áreas turística cearense, fazendo signos que representa o número 3, fator repreendido pelos algozes que julgaram e determinaram o assassinato dessa jovem vítima (Pinusa, 2024).
A repercussão na opinião pública se deu pelos símbolos, sinais e signos que fazem parte do mundo do crime e das organizações criminais (facções e comandos), razão que ocasionou a morte deste jovem, visto que o grupo de pessoas que sequestrou e assassinou o adolescente faz parte de uma organização criminal e o símbolo com a mão do número “3” é rival dessa facção (Pinusa, 2024). Esse triste caso não é um fato isolado e faz parte de inúmeras situações que ocorrem há tempos no Brasil, causado pelas disputas “geopolíticas” de organizações criminais por territórios, populações e econômicas lícitas e ilícitas em determinados territórios no Brasil.
O Observatório de Segurança Pública e Relações Comunitárias da UNESP (OSP) traz neste primeiro texto de 2025, algumas considerações sobre as dinâmicas do mundo do crime, a violência das organizações criminais e os impactos na vida da população desses territórios. O objetivo deste artigo é analisar a produção simbólica e cultural das facções no Brasil, com o foco em contextualizar os símbolos, sinais e signos dos principais comandos, com o intuito de entender as particularidades dessas situações que são atreladas em territórios, dinâmicas criminais e configurações de poder específico.
Os procedimentos metodológicos utilizados para abordar esse artigo são de cunho qualitativo, através da revisão bibliográfica sobre os enfoques da sociologia da violência, segurança pública, mundo do crime e organizações criminais. Ademais, houve a observação e coleta de dados online em plataformas de internet e redes sociais, como forma de compreender as simbologias empregadas por usuários de internet que disseminam e discutem esse tipo de nicho em suas realidades.
Assim, a partir de pesquisas realizadas anteriormente, principalmente, na dissertação de mestrado: “O crime produz segurança? Uma análise do dispositivo de proteção, segurança e administração de conflitos do Primeiro Comando da Capital nas periferias paulistas” (Dyna, 2023), este texto visa um desenvolvimento no debate público em relação a segurança pública e mundo do crime, avançando com reflexões e resultados para o conhecimento acadêmico, na conscientização da sociedade e a desnaturalização de preceitos que reforçam os reais problemas que assolam o povo brasileiro.
A estrutura deste texto será dividida em três partes, além desta introdução. A primeira, haverá a apresentação, contexto histórico, disputas, alianças e oposições das coalizões das organizações criminais. Em segundo, haverá a explicação da territorialização, aspectos culturais e produção simbólica dos símbolos, sinais e signos dos comandos no Brasil. Em terceiro, uma análise sobre as relações das organizações criminais, da produção simbólica e dos impactos reais que assolam o povo brasileiro, como forma de uma reflexão avançada para superar as amarras do senso comum que mais prejudica do que ajuda a esclarecer os dilemas, juntamente com as considerações finais.
Por fim, é importante ressaltar que, esse texto é o primeiro, de uma série de pesquisas sobre as organizações criminais, que os pesquisadores do OSP irão produzir em 2025 e prosseguirá nas estratégias de apresentação de trabalhos e conferências acadêmicas, no aprofundamento em artigos em revistas científicas e na divulgação em outros espaços para difundir o conhecimento e educação para a sociedade brasileira.
Organizações criminais: histórias, disputas e estratégias
No Brasil, a “cultura” de organizações criminais, como conhecemos atualmente, é datada desde a década de 1970, nas prisões e centros urbanos das metrópoles. Será conceituado “organizações criminais” como as facções, comandos, bondes e agrupamentos que atuam em diferentes territórios e que consolidaram um ethos, estrutura organizacional, prática criminal, exploração de economias ilícitas, produção simbólica e outras características que marcam o mundo do crime no Brasil.
Não é o foco deste texto uma revisão conceitual sobre esse termo, visto que os trabalhos de Muniz e Dias (2022), Machado da Silva (2010), Adorno (2019), Misse (2011), dentre outros pesquisadores, já cumprem tal função. Essas pesquisas avançam sobre os cuidados, qualidades e melhores conceituações teórico analítica, rompendo naquilo que se reproduz no senso comum de “organização criminosa”, termo que mais atrapalha do que ajuda na análise sobre esta realidade, algo que Machado da Silva argumenta sobre a relação de boomerang desses termos em terem uma gramática prática-moral (Silva, 2010), naturalizando essa condição e escondendo a complexidade do fenômeno.
Diante disso, a primeira organização criminal reconhecida foi o Comando Vermelho (CV), criado no final da década de 1970 em uma prisão no Rio de Janeiro, o que trouxe uma ruptura no processo penitenciário, na regulação social e ordem criminal nos territórios do Brasil. Em resumo, o CV surgiu nas conexões entre presos comuns e políticos no contexto da repressão e encarceramento na ditadura civil militar (1964-1985). Os presos comuns, com a experiência e aprendizagem com os presos políticos, começaram a organizar as dinâmicas criminais, os presos e os territórios nos morros cariocas ao longo dos anos, estabelecendo regras de conduta, ordem criminal, objetivos e estratégias, ações difusas e organização da ilegalidade no Rio de Janeiro e em outras regiões do país (Lima, 1991).
Em São Paulo, no começo da década de 1990, uma organização criminal surgida no interior das prisões paulistas, iniciou-se, até este momento, um novo objeto que impacta a realidade direta na sociedade, com uma nova organização dos presos, do crime, das dinâmicas criminais e relações da legalidade e ilegalidade. O Primeiro Comando da Capital (PCC) foi responsável por inúmeras mudanças em alguns segmentos.
Nas prisões, ele conseguiu dominar e unificar o sistema prisional sob sua influência, criando normas, ética, negociações e reivindicações para a massa carcerária sob seus interesses. Nas periferias, ele foi se consolidando a partir da década de 2000, em determinados territórios, sua ordem criminal que foi difundindo pela sua ética e regras que são incorporadas por segmentos da população. Na criminalidade, ele criou condições para a racionalização [ e empresarização] do tráfico de drogas, da proibição, controle e repressão de determinadas dinâmicas criminais, colaborando para a ordem na sociedade paulista (Dyna, 2023).
A partir do final das décadas de 2000 e começo de 2010, houve diversos processos concomitantes: novas políticas de segurança pública, tecnologias de transporte e comunicação, novas rotas ilícitas, reorganização da produção de substâncias ilícitas, denominadas como drogas, como a maconha e a pasta de coca que gera a cocaína e crack, aumento do consumo das drogas, dentre outros. Essa situação colaborou para novas facções, visto que essas duas facções, as maiores do Brasil, foram responsáveis pela disseminação da estrutura organizacional e atuações criminais em outras regiões do eixo Rio-São Paulo, criando a partir dos anos 2000, outras organizações criminais em diversas Unidades Federativa (UF) e municípios (Dyna, 2023), como forma de suprir o vácuo para a organização do mercado lucrativo do tráfico de drogas.
Diante desse contexto é que se difunde as facções pelo Brasil. Houve o estabelecimento de organizações criminais locais (como o Amigos dos Amigos (ADA) no Rio de Janeiro), as regionais (como o Bonde do Maluco (BDM), na Bahia, Espírito Santo, Sergipe, Alagoas) além das nacionais (PCC e CV, ambos presentes em todas as UF do país). A multiplicação de organizações criminais, muitas vezes difíceis de contabilizar pela instabilidade de suas existências, medidas por unificações, rachas e términos, como a antiga terceira maior facção do país, Família do Norte (FDN), geraram nos últimos 10-15 anos, um novo cenário que consolida esse tipo de racionalidade no mundo do crime, tratando dos comandos como organizadores das criminalidades e principalmente, na circulação e venda de substâncias psicoativas, cada um com suas próprias estratégias, moralidades, condutas e regras próprias, que transcendem para além do universo criminal, agindo em territórios da legalidade, impactando a vida dos moradores e trabalhadores que sofrem a influência do poder dessas organizações.
Assim posto, a partir da década de 2010, houve uma inserção do PCC e CV na fronteira entre o Brasil e Paraguai, na UF do Mato Grosso do Sul, cujo os objetivos, foram um maior domínio e criação de rede de contatos com os produtores de substâncias psicoativas, sendo a maconha no Paraguai e a coca nos países andinos e amazônicos, como na Bolívia, Colômbia e Peru (Manso; Dias, 2018). O PCC, a partir de uma grande operação, conseguiu matar um importante ‘traficante’ da fronteira de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero em 2016, uma das principais rotas que entrava mercadorias ilícitas ao Brasil, conseguindo uma forte presença e tentativas de controle, se tornando posteriormente, um player responsável na circulação e exportação de drogas para alguns pontos do Brasil e venda para outros continentes do planeta (Manso; Dias, 2018).
A “vitória” do PCC na fronteira trouxe muitas consequências para a composição do crime, havendo, definitivamente, o fim de uma aliança de não agressão (que não estava boa fazia alguns anos), colocando as duas principais facções do Brasil como rivais. Com o PCC e CV sendo inimigos, fortaleceu os blocos com alianças, inimigos e neutros no universo do mundo do crime, expresso na reorganização nos territórios dos comandos, nos massacres prisionais e nas periferias e na extrema violência que assolou as regiões norte e nordeste entre 2017 e 2019 (Manso; Dias, 2018; Ferreira; Framento, 2019).
Desse modo, as facções foram se estabelecendo nos blocos, a partir da condução PCC e CV, sendo na grande maioria dos casos, aliados de um bloco e sendo rivais de outro. Isso significa que, a partir do quadro criado em Dyna (2023), a partir de pesquisas de revisão bibliográfica e na imersão desses nichos em diversas plataformas de internet e na observação nas redes sociais, há dois blocos principais (mesmo sabendo que há outros blocos menores), um protagonizados pelo PCC, denominado Tudo 3, e o outro pelo CV, chamado de Tudo 22. O quadro a seguir foi elaborado em Dyna (2023, p. 103) e mostra algumas organizações criminais presentes em todas as regiões do Brasil.
Quadro: Descrição das alianças Tudo 2 e Tudo 3 referente à 2023
TUDO 2: Comando Vermelho (origem no Rio de Janeiro, presente em diversos UF do Brasil), União do Crime do Amapá (Amapá), Comando da Paz (Bahia), Bonde do Ajeita (Bahia), Comando Vermelho do Maranhão (Maranhão), Novo Okaida (Paraiba e Rio Grande do Norte), Comando Vermelho de Goiás (Goiás), Primeiro Comando de Vitória (Espírito Santo), Máfia Paranaense (Paraná), Primeiro Grupo Catarinense (Santa Catarina), Comando Vermelho de Santa Catarina (Santa Catarina), Bala na Cara (Rio Grande do Sul). |
TUDO 3: Primeiro Comando da Capital (origem em São Paulo, presente em quase todas UF do Brasil), Bonde dos 13 (Acre, Tocantins), Terceiro Comando Puro (Rio de Janeiro), Amigos dos Amigos (Rio de Janeiro) Comando Classe A (Pará), Família Terror (Amapá), Primeiro Comando do Panda (Rondônia), Guardiões do Estado (Ceará), Bonde do Maluco (Bahia), Estados Unidos (Paraíba), Comboio do Cão (Distrito Federal), Os Manos (Rio Grande do Sul). |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Para exemplificar a complexidade dessas disputas, será apresentado o contexto da UF da Paraíba, Rio Grande do Sul e São Paulo, três UF distintas no que tange a relação da configuração do mundo do crime. Esses 3 UF tem particularidades próprias e influências diretamente sobre os índices de violência, políticas de segurança e abastecimento das dinâmicas criminais. Na Paraíba, há uma inserção de facções locais (Estados Unidos e Nova Okaida3) que tem alianças e pertencentes aos blocos Tudo 2 (Nova Okaida com o CV) e Tudo 3 (Estados Unidos e PCC). A Nova Okaida é rival dos Estados Unidos e PCC, se alia ao CV e traz confrontos violentos nas periferias e prisões da Paraíba, conforme apontou a reportagem de Vasconcelos (2024).
No Rio Grande do Sul há um cenário atípico, juntamente com a Bahia e Rio de Janeiro, pois são as UF com maiores números de organizações criminais. Os gaúchos tem algumas agrupamentos, com maior e menor expressão, sendo Os Manos, Bala na Cara, Antibalas, Brasas, V7, Tauras, Abertos, dentre outros menores, que atuam em pequenas regiões de cidades e prisões gaúchas (Wikifavelas, 2024), além das influências e presença do PCC e CV. Mesmo com a multiplicação aguçada desses comandos, não há confrontos violentos e altos índices de homicídios como na Bahia e Rio de Janeiro, sendo a dinâmica criminal gaúcha distinta.
Em São Paulo, há a hegemonia do PCC em quase toda UF, com pequenas disputas em alguns territórios prisionais com organizações prisionais antigas, como o Comando Democrático da Liberdade, Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade e a Seita Satânica. Além disso, houve nos últimos anos uma dissidência em Rio Claro, interior de São Paulo, com a criação do “Bonde do Magrelo” que atuava em territórios periféricos, mas sem uma forte expressão.
Desse modo, com a ascensão e fortalecimento da ordem criminal do PCC desde a década de 1990, São Paulo foi se “integrando” com uma “concessão” do PCC para organizar territórios, dinâmicas e populações, produzindo um conjunto de regras, moralidades, ética, condutas, normas e subjetividades, que foram se incorporando ao longo dessas décadas nas periferias e prisões, o que trouxe um processo complexo de “pacificação” (Dias, 2011) e controle do crime pelo próprio crime, sendo uma exceção, visto que há na prática apenas uma facção em toda UF.
Voltando, essas organizações criminais estão inseridas nas atuações das principais rotas comerciais que trazem a produção de drogas, fazem a circulação por todo país e abastecem o varejo em diversos pontos de comércio de drogas (biqueiras), além de exportarem via atacado para outros continentes, principalmente os mercados consumidores na Europa, o que se estabeleceu, a partir de 2018, em um mercado bilionário. As duas principais rotas, que ligam regiões de fronteira do Brasil com seus vizinhos, até portos no litoral, são a rota caipira e a Solimões.
A rota caipira é um vasto caminho que liga a região fronteiriça do centro oeste (Mato Grosso do Sul, Mato Grosso) e Sul (Paraná) com os países Paraguai e Bolívia, até os centros urbanos e os portos do litoral, passando por rotas rodoviárias e aéreas, com muitas pistas de pousos clandestinas, suborno de agentes do Estado e uma rede de pessoas que não estão dentro das dinâmicas do mundo do crime, ampliando uma rede de ocupação e trabalho que sustenta esse tipo de rota (Abreu, 2017). As mercadorias, no Brasil, vão passando por cidades pequenas e médias no interior, estabelecendo as mercadorias com as facções locais e regionais entregue por acordos comerciais pelas nacionais, o que fortalece os blocos criminais.
A rota Solimões se localiza na região amazônica, no norte do Brasil. Diferente da rota caipira, que o foco é o modal rodoviário, a rota Solimões é realizado pelo transporte de pequenos barcos na rica rede fluvial da bacia amazônica, além de pequenos aviões que pousam em pistas clandestinas em plena floresta densa (Ferreira, Framento, 2019). Desse jeito, a rota Solimões pegavam as mercadorias nos países fronteiriços da região amazônica e transporta para regiões no norte, centro oeste e nordeste, abastecendo as facções locais e regionais, além de algumas mercadorias serem exportados para os portos, alimentando o comércio bilionário (Ferreira, Framento, 2019).
Portanto, de maneira introdutória, este é o cenário das organizações criminais no Brasil, que foi apresentado por um contexto histórico, suas alianças e rivalidades que condicionam as mudanças e intervenções na sociedade brasileira, aumentando, ordenando e configurando a segurança pública em diversas UF e cidades. No próximo subcapítulo, irá se aprofundar a produção simbólica dessas dinâmicas particulares do mundo do crime, explicando os símbolos, signos e sinais que os blocos utilizam como forma de unificar e pautar suas estratégias de poder em diversos espaços (reais e virtuais).
A produção simbólica das organizações criminais
A partir da explicação anterior, serão analisadas algumas produções simbólicas muito presentes em diversos nichos da cultura subalterna. Isso significa que práticas do mundo do crime e organizações criminais foram sendo assimiladas com práticas, saberes e subjetividades com culturas de jovens, de periferias e outros segmentos da sociedade, não havendo nesses últimos, um envolvimento com o ilegal e ilícito, mas sim, um longo processo de conexões de um com o outro, deixando cinzento as diferenciações do que é algo do crime e o que foi além disso. Essa premissa, que pode ser compreendida como uma hipótese do autor, é importante, pois pretende evitar rotulações e criminalizações de discursos e práticas que não fazem parte do crime em si, mas sim, que foi inseridas num contexto mais amplo de ligações de setores do legal e ilegal, em razão da complexidade de separar o “preto” e “branco”, deixando tudo cinza.
Dessa maneira, a produção simbólica das organizações criminais estão totalmente associadas às culturas locais e regionais de seus territórios e realidades. Assim, músicas com forte influência de uma região (funk carioca, funk e rap paulista, forró e brega funk nordestino, brega paraense, dentre outros) são incorporados na natureza das organizações criminais, já que os comandos não são externos a sociedade e fazem as mesmas práticas de todo cidadão. Além disso, gírias, jargões e expressões são inseridos também nessa produção simbólica, respeitando suas culturas e identidades com pertencimento aos seus locais estabelecidos. A naturalização da segurança pública é também outro exemplo, visto que UF com maiores confrontos e violências dessas facções, como a Bahia e Rio de Janeiro, criam na subjetividades das pessoas, moralidades para se comportar em situações densas, algo diferente de São Paulo, pois pela ordem criminal e pacificação desse tipo de problema, trouxe uma maior organização e “respeito” em relação a conflitos [desnecessários].
Dito isso, as organizações do Tudo 2 tem uma representação do número 2, seja por sinais com a mão, por emojis em redes sociais ou canções que são difundidas por músicas de gênero funk. Não se sabe de fato, como foi criado a representação “2” para essas facções, contudo, a probabilidade é alta de estar associado aos sinais “C” e “V” com a mão, sendo que o “V” é semelhante com o número 2. Assim, representações com o “2” com a mão é uma associação direta ao Tudo 2 e seus comandos. Os emojis “🚩”, “2️⃣”, “✌” também fazem parte dessas associações, concentrando-se em territórios que as facções do Tudo 2 influenciam, criando rivalidades simbólicas, somadas aos confrontos bélicos, políticos e territoriais que constroem esse tipo de universo.
Na imagem a seguir, a partir da análise e coleta de dados em redes sociais sobre o universo criminal, há um flyer sobre uma nota postada em grupos de mensagens por aplicativo e redes sociais, em que se suspeita que o CV dominou um território na baixada fluminense, expulsando as milícias em 2024. Observa-se que as cores vermelhas (bandeira, balão), a expressão “Ta 2” e outros signos fazem parte do universo criminal (CV) e das questões culturais nesses territórios.
Imagem: Flyer do CV com informações
Fonte: Coleta de dados nas redes sociais
As músicas são muito disseminadas para as estratégias das organizações criminais. No contexto do Rio de Janeiro, o CV, atrelado com alguns MC’s de funk, produziram ao longo das últimas duas décadas diversas canções sobre o funk carioca “proibidão”, que remete às vivências, histórias e disputas no universo criminal, sendo difundida por representantes da criminalidade e também, consumidas por outros segmentos fora dela, não havendo uma fronteira precisa para quem curte esse tipo de conteúdo. Destarte, o trecho da música a seguir contém algumas informações simbólicas, com signos remetentes ao Tudo 2 e aos dilemas de viver e guerrear no crime:
Os TCPuta tá peidando pro bloco dos cria. Nós odeia ADA e TCP. Desde menor sou Comando, nós é relíquia. Trem bala dos manos. Com os fuzil tudo na pista, ah, ah, ah. Tropa do General com vários. ParaFAL. Tá 2, tá 2. Tropa do General com vários ParaFAL. Tá 2, tá 2 (Tropa do General, 2019, Funk do momento)
Nessa canção de 2019, há uma exaltação ao CV e a aliança “Tudo 2” (tá 2), com xingamentos, palavrões e rivalidades entre organizações como o ADA e TCP, além de palavras coloquiais que trazem uma linguagem informal e específica a partir desse nicho de música. A simbologia dessa canção soma-se às representações de sinais com a mão e aos signos que remetem esse tipo de bloco criminal, sendo proibido em determinados territórios por ser uma afronta contra outras organizações rivais ao CV.
Agora utilizando o mesmo método para analisar as simbologias do Tudo 3, as organizações criminais também reproduzem a mesma lógica: sinais com a mão, emojis e signos em redes sociais, pichações com símbolos em becos, ruas e avenidas, flyers e avisos nas plataformas de internet e aplicativos de mensagem, além de músicas que narram essas experiências no mundo do crime. Como no Tudo 2, não há uma precisão da origem de fato sobre essa simbologia, podendo haver algumas hipóteses, como no alfabeto congo e a relação do PCC, dado que o signo do PCC é representado pelos números 15 3 3, sendo 15=P, 3=C e 3=C, tornando 3 um signo marcante e oposto ao Tudo 2. A aliança Tudo 3 utiliza emojis as seguintes referências: “🤟”, “👌” e “☯️”. O símbolo do Yin Yang é mais voltado para o PCC, mas na análise e coleta de dados nas redes sociais, percebeu-se que outros comandos ligados a facção paulista também fazem esse mesmo tipo de signo.
Na próxima imagem, remete a uma orientação geral da aliança Tudo 3, pela união em alguns territórios do BDM com o TCP em regiões da Bahia e Rio de Janeiro. A mensagem foi retirada do aplicativo de conversas e tem diversos simbologias no corpo do texto e em adereços, como por exemplo, nos emojis “🤟” e “👌” além de bandeiras de alguns países, como Israel, o que remete ao complexo de Israel4, sob ordem criminal do TCP no Rio de Janeiro.
Imagem: Comunicado da união entre BDM e TCP
Fonte: Coleta de dados nas redes sociais
Em relação às canções da aliança do Tudo 3, uma música oriundo do funk paulista discorre sobre o confronto entre Tudo 2 e Tudo 3, lançado no ano de 2020. Nessa música, há uma questão cultural de condutas nos bailes funks de São Paulo e Rio de Janeiro, além de indiretas contra o cantor MC Poze, influente no Tudo 2, parte das estratégias de poder para se impor uma aliança contra a outra, apresentado na canção a seguir:
Se ta 3 ta lindo se ta 2 vai passa fome. Levanta os guarda chuva, levanta o fuzil. Levanta a umbrella, levanta o fuzil. Família tudo 3 é a maior do Brasil. Cade o MC poze? Vai para puta que pariu. (MC Dinho da VP, 2020).
Dessa forma, a aliança Tudo 3, além de disputar o controle da ordem em determinados territórios, produz simbologias que são assimiladas com os territórios periféricos em que estão sob sua influência, deixando complexo, pela junção das práticas e discursos, diferenciar aquilo que é do “crime” e aquilo que supera a fronteira e vai para a outros segmentos legais. Essa problemática, iniciada no início desse subcapítulo, é o que reforça comentários e visões estigmatizantes, ou seja, generalizar que todos os cidadãos que residem em territórios sob influência da facção fazem parte do mundo do crime, o que cria uma criminalização da pobreza, dos territórios e dessas populações, reforçando os problemas que há na atualidade. Uma maior compreensão sobre esses fenômenos é importante para uma suprassunção dessas contradições.
Pressupostos importantes sobre as dinâmicas simbólicas e considerações finais
Como supracitado, no Brasil, há dezenas de organizações criminais, com naturezas diferentes, com histórias peculiares, mas com semelhanças no que tange à ordem criminal, as dinâmicas criminais e na (re)organização da ilegalidade e ilicitude, criando a partir da década de 2010, blocos criminais com alianças e inimizades que são denominados, os principais, Tudo 3 e Tudo2, protagonizado pelo PCC e CV.
Além da ordem criminal, das disputas de poder, da violência e confronto com outras organizações criminais, do tráfico de drogas, esses comandos criaram uma produção simbólica que remete aos seus interesses, suas vivências e estratégias de poder. Os símbolos, signos e sinais são criados a partir de contextos culturais-locais, de religiosidades, das vivências nas prisões e periferias, da moralidade e ética, dentre outros componentes, fazendo que essa produção simbólica fosse além da questão do crime, havendo muitas pessoas que se interessam por esse tipo de conteúdo, consumindo sobre um universo oculto.
Isto posto, voltando com a lástima notícia sobre a morte do jovem em Jericoacoara, no Ceará. Aquele jovem tirou algumas fotos com os sinais 3 na mão, que remete o Tudo 3 e foi assassinado por pessoas ligadas ao Tudo 2, da facção CV do Ceará, segundo a reportagem em G1 CE (2024). Essa prática é comum na juventude, pois como falado algumas vezes, não há uma fronteira precisa do que diferencia o que é do crime e o que é de uma cultura periférica da juventude, deixando porosas essas relações.
Neste caso, o jovem que não tinha ligações com o PCC ou Tudo 3 fez o sinal e foi morto, pelo simples motivo de reproduzir um gesto comum em sua realidade, o que traz uma alerta sobre condutas e comportamentos, aprofundada pelo sensacionalismo da mídia e redes sociais. Dessa maneira, é possível fazer alguns pressupostos para um maior e melhor fomentar o debate:
1) As simbologias, seus signos e sinais fazem parte de um contexto histórico, espacial e criminal, havendo um determinismo territorial na qual esse tipo de produção tem sua importância, havendo locais que é necessário um maior autocontrole e segurança para fazer esses tipos de comportamento, ao mesmo tempo que há locais que não há uma necessidade desse tipo de questão, pois as dinâmicas sociais, criminais e de segurança são distintas.
2) Assim, é necessário averiguar primeiro a localidade, compreender qual (ou quais) facções estão presentes e se nesse território há disputas e confrontos atuais. Lembrando que, em São Paulo, não há esse tipo de problema, contudo, no Rio de Janeiro, Bahia e Ceará, infelizmente há, não podendo generalizar, amenizar ou romantizar esses tipos de situações.
3) Os sinais com as mãos não são exclusivos das organizações criminais do Brasil. Na realidade, em outras organizações criminais em diversos lugares do planeta (marras e carteis mexicanos, gangues de El Salvador, Estados Unidos e Honduras, grupos paramilitares, carteis e narcogrupos colombianos também tem uma produção simbólica com sinais de mão em suas próprias condições.
4) Mas não é apenas no mundo do crime que ocorre isso, no futebol e nas torcidas organizadas do Brasil, foram criados signos e sinais com as mãos e braços, exemplificado pela união punho cruzado e a união de dedos para o alto. Na política, no contexto eleitoral de 2022, houve uma popularização por parte da polarização de candidatos à esquerda (atual presidente Luís Inácio Lula da Silva) e direita (ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, derrotado na época), com o sinal de “L” para os apoiadores e eleitores de Lula e o sinal de “arma” para os apoiadores e eleitores de Bolsonaro.
5) A produção simbólica do mundo do crime se insere na produção cultural nas periferias, juventudes e culturas subalternas, tornando relações cinzentas e que se conectam com legitimidades, moralidades e histórias difusas sobre o que é o crime e o que é moradia. Isso significa que essa união de polos, que para os nativos desse universo é algo natural, mas quem não conhece estranha esse fenômeno, cria uma rede de sociabilidades que foi se consolidando ao longo dos anos, havendo gerações distintas que conviveram e ainda convivem com as regras de conduta e visões de mundo, algumas reformadas e outras conservadas, estabelecendo o que é a vida nos territórios periféricos e precários no Brasil.
6) Deste modo, esses pressupostos indicam que há um real problema sobre a ordem criminal e suas ações para além da demarcação do mundo do crime. Quando há uma incorporação desses signos e sinais feito pelos indivíduos, é necessário um esclarecimento sobre essas particularidades, entendendo que os símbolos é consequência da relação direta entre facção-território-população, devendo ter o cuidado de reproduzir sem um conhecimento adequado, ao mesmo tempo evitando de criminalizar e reprimir em contextos diferentes.
É nesse mar de incertezas que os problemas da criminalidade, segurança pública e violência se floresce, suas reações inadequadas podem transformar o mar em tsunami, piorando o problema e reificando a estrutura das mazelas, dificultando a vida em sociedade. O intuito deste texto, visa uma leitura geral sobre os problemas, a repercussão dos dilemas e possíveis soluções para essas contradições, não caindo no pêndulo da romantização do crime e nessa vida e na repressão a-estratégica contra as periferias e populações desses locais, pois ambas fortalecem os problemas da segurança pública no Brasil. Remar nesse mar de incertezas e contornar as ondas dos desafios é o primeiro passo para chegar ao objetivo final de viver uma realidade sem problemas de desigualdade social, exploração, insegurança, violência e criminalidade.
Referências
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SILVA. Luiz Antonio Machado da. Violência urbana, segurança pública e favelas – o caso do Rio de Janeiro atual. Caderno CRH – UFBA (impresso), v. 23, p. 283-300, 2010.
VASCONCELOS, Dennilson. (Paraíba). G1 Pb. Entenda por que guerra entre facções é apontada como motivo para alta de assassinatos na Grande João Pessoa. 2024. Disponível em:https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2024/04/28/entenda-por-que-guerra-entre-faccoes-e-apontada-como-motivo-para-alta-de-assassinatos-na-grande-joao-pessoa.ghtml. Acesso em: 07 jan. 2025.
WIKIFAVELAS. Equipe do dicionário de favelas Marielle Franco. Facções criminosas no Rio Grande do Sul. 2024. Disponível em: https://wikifavelas.com.br/index.php/Fac%C3%A7%C3%B5es_criminosas_no_Rio_Grande_do_Sul#O_estado_que_concentra_o_maior_n%C3%BAmero_de_fac%C3%A7%C3%B5es_do_pa%C3%ADs. Acesso em: 07 jan. 2025.
- Doutorando do Programa de Pós Graduação em Sociologia na UFSCar. Mestre em Ciências Sociais pela UNESP de Marília. Pós graduado em Políticas Públicas e Projetos Sociais no SENAC/SP. Graduado em Ciências Sociais na UNESP de Marília. Pesquisador do Observatório de Segurança Pública da UNESP, do Laboratório de Realidades Virtualizadas da UNESP e do Grupo de Pesquisa sobre Violência e Administração de Conflitos da UFSCar. E-mail para contato: eduardo.dyna@estudante.ufscar.br. ↩︎
- Esse levantamento foi realizado a partir da pesquisa de mestrado em 2023, cujo o intuito foi mais um mapeamento dessa geopolítica do crime de forma inicial, para uma maior materialização desses grupos em cada UF, amizades, neutros e inimizades. É possível que, na escrita desse texto em 2025, alguns comandos tenham mudado suas posições nessa geopolítica, devendo ter a compreensão do leitor sobre essas dificuldades de pesquisa.
↩︎ - A Nova Okaida é uma dissidência da antiga Okaida, que também teve outras rachas no passado recente. ↩︎
- Não é o foco deste artigo tratar sobre essas especificidades, mas vale a pena discorrer sobre o complexo de Israel. O complexo de Israel é um conjunto de territórios na zona norte da capital fluminense, organizado pelo TCP e chefiado pelo líder “Peixão”, um indivíduo que controla o tráfico de drogas e outras dinâmicas criminais e legais. O complexo de Israel ficou conhecido nos últimos anos pelo fundamentalismo religioso neopentecostal cristão, proibindo a prática religiosa do catolicismo e de religiões afro-brasileiras. ↩︎
Mestrando do Programa de pós graduação em ciências sociais (stricto sensu) na Universidade Estadual Paulista (UNESP) - campus de Marília, na linha 1: Pensamento Social, Educação e Políticas Públicas (2021-2023). Foi bolsista FAPESP, produzido uma pesquisa sobre as disputas de poder entre o PCC e a PM na chacina de 2015 em Osasco (2020).