por Gabriela Mariah Nascimento de Souza
INTRODUÇÃO
A peça de teatro “Traga-me a cabeça de Lima Barreto” é um monólogo de ficção contracenado pelo ator Hilton Cobra, que interpreta o escritor fluminense Afonso Henrique de Lima Barreto (1881 – 1922). O enredo da peça, que mistura ficção e realidade, narra o envio do cérebro do Lima Barreto, após a morte do escritor, para análise dentro de um Congresso Brasileiro de Eugenia, que procura responder o seguinte questionamento dos eugenistas: “Como um cérebro inferior produziu tantas obras literárias se o privilégio da arte nobre e da boa escrita é das raças superiores?”. Desta forma, o presente trabalho vai realizar uma análise sobre os principais pontos da produção artística em questão, relacionando-a com uma das principais discussões contidas na área da sociologia do conhecimento: a crítica ao discurso científico eurocêntrico como a única forma de saber socialmente legitimada.
Dessarte, a peça teatral expressa as dores internas vivenciadas por Lima Barreto no decorrer da sua trajetória biográfica. Escritor negro, pobre, marginalizado e dotado de uma genialidade que foi posta de escanteio pelos intelectuais da época, o autor teve uma vida marcada pela melancolia e por conflitos internos ao assumir uma postura política na sua literatura que se contrapunha aos valores bucólicos, românticos e embranquecidos reverenciados pela elite literária brasileira da Primeira República, que evitava abordar questões sociais no meio artístico. Nessa perspectiva, é possível compreender o sarcasmo e a ironia presentes nas obras e nas atitudes do escritor como um mecanismo de denúncia das mazelas sociais que acometiam os sujeitos marginalizados no Brasil do século XIX.
Outrossim, esta amálgama de diferentes fatores, como o compromisso político-literário, a raiva, a tristeza e o humor que caracterizavam Lima Barreto, são pontos que foram brilhantemente incorporados na encenação protagonizada pelo ator Hilton Cobra, que evidencia toda a inteligência, a sensibilidade e a desordem contidas na subjetividade do escritor.
DESENVOLVIMENTO
Inicialmente, é importante destacar que por mais que a análise do cérebro do Lima Barreto pelo colóquio de eugenistas no Brasil não tenha ocorrido de fato, a estrutura racista da sociedade brasileira que impôs o silenciamento sobre o autor e a existência empírica do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia em São Paulo durante o ano de 1929, são dois fatores que expressam a possibilidade factual de um experimento desse tipo ter acontecido no Brasil. Nessa perspectiva, a arte e a ficção são mecanismos que dialogam com a realidade material, podendo servir como instrumentos de denuncia das problemáticas sociais, já que um experimento semelhante ao que foi proposto na peça ocorreu com o cérebro de Virgulino Ferreiro da Silva, o Lampião, durante o ano de 1938, quando o cangaceiro teve a sua massa encefálica analisada sob a ótica da teoria lombrosiana. Lombroso, assim como os eugenistas presentes no inquérito realizado com Lima Barreto, defendia que existiam fatores biológicos e raciais que caracterizavam um indivíduo enquanto inferior. No caso específico da teoria lombrosiana, percursora da antropologia criminal, a hipótese principal defendida pelo antropólogo italiano era a possibilidade de identificar um “criminoso nato” por meio de características biológicas.
Ademais, a peça representa a realidade vivenciada por sujeitos negros que refletem até os dias atuais, já que as produções literárias, científicas e artísticas desenvolvidas por sujeitos não-brancos são desmerecidas pelo aparato hegemônico da ciência ocidental e pelas elites artísticas, caracterizadas por serem essencialmente eurocêntricas. Além disso, a desvalorização de produções literárias locais evidencia a mentalidade colonizada presente na sociedade brasileira, que olha para si própria a partir de um olhar inferiorizante.
Um outro ponto interessante no enredo da peça é a subdivisão do monólogo por meio de sete teses fundamentais que expressam o pensamento eugenista da elite intelectual da época, denunciando personalidades brasileiras famosas que corroboraram com a propagação de ideais visceralmente racistas, como o sociólogo Fernando de Azevedo, o escritor Monteiro Lobato, o Conde de Gobineau (conselheiro de Dom Pedro II), o fundador da antropologia criminal brasileira, Nina Rodrigues, e o fundador da sociedade eugênica de São Paulo, Renato Kehl. À vista disso, a peça utiliza trechos escritos por cada um desses indivíduos nos quais eles defendiam a superioridade da raça branca, com o intuito de demonstrar a violência contida em preposições supostamente científicas.
Conforme os eugenistas presentes no colóquio levantam uma série de perguntas para o escritor, simulando um procedimento de inquérito, Lima Barreto contesta e ironiza a inquirição em questão, evidenciando o quanto o apagamento da sua produção literária e a ausência de concretização da sua tão sonhada ascensão social foi um processo que se deu por conta da sua condição racial e de classe, e não por falta de competência ou “descumprimento das regras estéticas requisitadas pela Academia Brasileira de Letras”.
Ademais, logo nas cenas iniciais da peça, o enredo levanta um questionamento sobre o próprio significado da arte, ao utilizar trechos narrados na língua inglesa que abordam a arte como mecanismo autocontemplativo, responsável por refletir o ideário de beleza greco-romana e que não deve, em hipótese alguma, discutir os problemas sociais existentes na realidade material. Esse postulado é criticado por meio da sequência de imagens trabalhadas, nas quais as esculturas gregas são performadas por homens cisgênero brancos, seguida da explicação sobre quem foi Francis Galton, criador do conceito de eugenia (desenvolvido no livro “Hereditary Genius” em 1869) e defensor da seleção social dos seres humanos com base em uma hierarquia racial, aplicando o conceito de seleção natural (proveniente da biologia e desenvolvido pelo seu primo, Charles Darwin) para as relações sociais humanas.
A partir dessa contextualização inicial, o espectador é inserido dentro da perspectiva do Lima Barreto, que subverteu todos esses preceitos em diferentes âmbitos, já que todas as dimensões da sua vida se contrapunham ao cenário idílico e embranquecido citado acima. Assim, a sua trajetória individual, a valorização da ancestralidade negra (representada pela sua bisavó que foi arrancada da nação Moçambique e trazida à força para o Brasil), a postura corrosiva para com a Academia Brasileira de Letras, que negou o seu ingresso três vezes consecutivas por não considerar a escrita de Lima Barreto rebuscada o suficiente, os problemas financeiros e a raiva que o autor tinha ao ser comparado com Machado de Assis, que ele considerava demasiadamente passivo, expressam as contradições que afligem um sujeito subalterno dotado de voz dentro do maior país da América Latina.
Por fim, o encerramento da peça aborda o diagnóstico da autópsia do cérebro do escritor, que é definida por ser uma “mente sadia em cabeça estragada”. Assim, os eugenistas decretam que a porcentagem de “sangue branco” na composição genética do escritor é responsável pela produção de livros primorosos, enquanto o “sangue negro” é culpabilizado pelos livros que não são considerados moralmente elevados. Diante deste absurdo, as luzes do cenário são apagadas e a voz do Lázaro Ramos narra o fenômeno denominado como “teoria dos espectros revoltados”, que aconteceu na noite do congresso: a cabeça do escritor explodiu e os seus tesouros, contos, livros, sátiras e personagens ocuparam todo o local. Podemos perceber que a metáfora em questão aborda não só a valorização do autor e da sua respectiva produção artística, mas também a valorização de uma epistemologia afro-brasileira invadindo espaços racistas e etnocêntricos.
Partido das discussões realizadas na área da sociologia do conhecimento, é possível afirmar que o processo de produção de conhecimento é uma forma de disputa política em relação à produção de sentido no mundo. Dessa forma, o desenvolvimento da ciência ocidental foi sustentado com base no processo de expansão do imperialismo europeu, que massacrou outros povos e impôs uma concepção única de mundo sobre outras culturas, definindo-a enquanto “universal”. Dentro dessa perspectiva, na medida em que o conhecimento foi monopolizado, apenas um grupo homogêneo foi considerado produtor de saberes legítimos: o homem branco europeu. Logo, a racionalidade reivindicada pelo conhecimento científico atinge o seu apogeu com o desenvolvimento de teorias eugenistas, já que elas representam a essência da superioridade ontológica europeia no mundo moderno.
No livro “A verdade e as formas jurídicas” (1973), Foucault defende a tese de que novas práticas sociais geraram novas formas de saber ao longo da história da humanidade, e que, no ocidente, essas práticas se estabeleceram por meio de formas jurídicas, criando uma relação direta entre a produção de conhecimento legítimo e as formas de poder vigentes desde o início da Idade Moderna.
Na Conferência III do livro em questão, o autor procura analisar o estabelecimento do inquérito, procedimento ao qual o próprio Lima Barreto é submetido ao longo da peça teatral, como forma de poder-saber surgida no final da Idade Média. Em vista disso, a efetivação do inquérito como forma jurídica no ocidente se deu através de um processo histórico complexo, que contrapôs o “direito bárbaro”, que se processava a partir de um sistema de desafio binário (onde há um vencedor e um perdedor), com o direito moderno, onde a figura do procurador é introduzida no julgamento, representando os interesses da classe dominante. Foucault explica que essa mudança da estrutura judiciária não representa, como muitos defendem, um processo de racionalização da sociedade, mas sim, uma mudança da produção de conhecimento a partir da mudança nas estruturas sociais e políticas do poder, que se concentravam cada vez mais nas mãos da nobreza emergente.
Assim, na medida em que ofender o soberano e cometer o pecado se tornam coisas equivalentes (no sentido jurídico), o inquérito se estabeleceu como forma de poder-saber. Nesse sentido, o inquérito é uma forma de saber que permitiu a administração econômica dos Estados, fez balanços sobre a população, estimativas sobre a economia e aumentou o poder real. Também foi a partir do inquérito que surgiu a economia política, a estatística, a geografia e a astronomia.
O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise destas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e as determinações econômico-políticas. (Foucault, 2002, p. 78).
Dessa maneira, essa “autentificação da verdade” citada no excerto acima se concretiza a partir de uma estrutura vertical, na qual o representante do poder reconstroí o passado do acusado buscando “a verdade” da situação em questão. No caso do Lima Barreto, este procedimento é conduzido por cientistas eugenistas, fator que ironiza a estrutura racista presente na sociedade brasileira, já que o cientista realmente detém uma posição de poder dentro das relações sociais independentemente das crenças defendidas por ele. Outrossim, a suposta “imparcialidade” do método científico é posta em questão no percorrer da peça, na medida em que essa metodologia é aplicada a fim de provar pressupostos pautados na tese da superioridade racial branca.
Não obstante, o desenvolvimento de teorias eugênicas era, na época, abertamente defendido pela comunidade científica, e reinvidicado dentro de debates acadêmicos que influenciaram o desenvolvimento de políticas sociais que visavam “a melhoria da raça e o progresso da nação” no Brasil. Segundo Tamano (2022), Renato Kehl, médico citado nas sete teses fundamentais presentes na peça de teatro, defendia os seguintes pressupostos:
Foi a partir de 1928 que, de fato, (Renato Kehl) passou a abraçar os pressupostos da consagrada vertente negativa da eugenia, que defendia a realização de esterilizações compulsórias, abortos, segregação racial, impedimento de casamentos inter-raciais e seleções de imigrantes pautadas na raça do indivíduo. (Tamano, 2022, p. 35).
Nessa perspectiva, podemos notar como a metodologia científica pôde ser utilizada para servir propósitos políticos racistas que visavam criminalizar a pobreza, reafirmando a superioridade de um grupo específico sobre a pluralidade sociocultural presente na realidade empírica. Ainda, por mais que o darwinismo social tenha estabelecido duas categorias principais de raça humana, na qual o europeu aparecia como o superior e outros povos apareciam como inferiores, havia quatro subclassificações entre os inferiores, onde o indivíduo africano aparecia na última posição.
Nesse sentido, por mais que a ciência moderna se autointitule como “racional” e “neutra”, a validação social que ela possui se constitui a partir do discurso de legitimidade do cientista, fator que reflete as estruturas de poder da sociedade atual. Em outras palavras, a defesa das metodologias científicas em si, como a criação de hipóteses e a aplicação de testes empíricos, importam menos do que quem está reinvindicando a posição de “cientista”.
Em vista disso, podemos afirmar que essa legitimidade se constitui a partir de um referencial específico de intelectual, que cumpre determinadas características de cor, gênero e extrato social. Isso explica a rejeição que Lima Barreto sofreu em relação à elite literária existente na primeira república brasileira, já que ele era um sujeito marginal reivindicando os elementos que o constituem enquanto tal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, o roteiro ficcional no qual o cérebro de Lima Barreto é submetido a uma análise dentro de um colóquio de eugenistas no Brasil, procura evidenciar diversas contradições que estão historicamente presentes na estrutura social brasileira. Dessa forma, a tese da supremacia racial, o descrédito para com as obras produzidas por um indivíduo negro e marginalizado, e até mesmo a estrutura de julgamento desenvolvida ao longo da peça teatral (o inquérito), salientam as relações existentes entre ciência, conhecimento e poder.
Nessa perspectiva, a peça de teatro “Traga-me a cabeça de Lima Barreto” evidencia a necessidade da socialização de conhecimentos não-hegemônicos produzidos por sujeitos subalternizados na sociedade capitalista, dentro de um movimento que procura subverter a relação direta existente entre a produção de conhecimento validado e as estruturas de poder vigentes. Assim, a metáfora que ocorre nos minutos finais da peça, quando a cabeça do autor explode e todos os contos invadem o laborário, representa um manifesto para que os espectadores conheçam cada vez mais a produção artística de Lima Barreto e de outros sujeitos que foram silenciados ao longo da história.
Ainda, por mais que a ciência moderna tenha trazido diversos avanços tecnológicos para o mundo atual, devemos lembrar que a imposição de um modelo hegemônico de cultura, arte e ciência não corresponde às diversas ontologias existentes no mundo atual. Nesse sentido, a escrita militante, politizada e afroidentificada de Lima Barreto expressa a voz de todos aqueles brasileiros que vivenciaram e vivenciam as violências reproduzidas pelo processo colonial no cotidiano e não puderam falar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau/PUC, 2002.
LIMA BARRETO. Literafro, o portal da literatura afrobrasileira, 24 de maio de 2022. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/450-lima-barreto>. Acesso em: 30 de abril 2024.
TAMANO, Luana Tieko Omena. O primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929): as discussões em torno da eugenia no Brasil. Tempo, v. 28, p. 31-55, 2022.
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