Narco-Estado, Narco-Terrorismo e o Crime Organizado: PCC, CV, TCP e Milícias

Eduardo Armando Medina Dyna1

Introdução

O ano de 2025 apresentou situações no campo da segurança pública e nas ações das organizações criminais2 que floresceram discussões na opinião pública. Um dos temas debatidos foram os termos “Narco-Estado” e “Narco-Terrorismo”, expressões constantemente disseminadas por parlamentares conservadores, segmentos das forças policiais e movimentos/atores políticos que exploram as contradições na segurança pública para se aproveitarem do medo, violência e na morte para atingir seus próprios interesses.

O Observatório de Segurança Pública e Relações Comunitárias (OSP) propõe-se, nesse artigo, a refletir sobre os termos Narco-Estado e Narco-Terrorismo. O entendimento dessas expressões enraizadas em comentários, debates e movimentos na opinião pública traz efeitos de projetos políticos na segurança pública que envolvem efeitos que podem fomentar problemas de governabilidade, gastos inoperantes e deficiências no desenho de políticas públicas para a segurança e no combate ao crime. Além disso, as expressões Narco-Estado e Narco-Terrorismo, surgem em contextos que vão além das fronteiras da segurança pública brasileira, mas também que atravessam em questões geopolíticas, na soberania nacional, nos limites das instituições estatais, nos interesses econômicos e políticos dos atores nesse campo e na incompatibilidade da relação entre fenômeno e conceito que prevalece nesse debate.

O objetivo central deste artigo é desnaturalizar os termos Narco-Estado e Narco-Terrorismo no contexto brasileiro, não se concentrando a realidade de outros países, para assim evidenciar sua fragilidade conceitual e os interesses dos agentes que os utilizam. Para isso, o texto propõe analisar o conteúdo epistêmico dos argumentos e discursos empregados pelos sujeitos que instrumentalizam seu uso, apontando suas falácias e limitações teóricas-analíticas. Para a realização deste trabalho, foram empregados procedimentos metodológicos qualitativos. Isso envolveu uma revisão bibliográfica abrangente sobre temas como organizações criminais, segurança pública, violência, governança criminal e terrorismo. Além disso, a pesquisa incluiu o levantamento e a revisão de notícias da imprensa, bem como o monitoramento, levantamento e análise de dados disponíveis em plataformas da internet e redes sociais.

A estrutura deste artigo será organizada em uma parte principal, com subdivisões que ajudarão o leitor a compreender as críticas durante o conteúdo, além desta introdução e das considerações finais. O foco no desenvolvimento será no debate conceitual, cujo foco é desmantelar os limites e a incompatibilidade com a realidade dos termos estudados, mostrando como eles servem de pretexto para outros interesses, sem efetivamente solucionar os problemas da segurança pública e um combate ao crime de forma coesa.

Por fim, este artigo foi escrito como uma primeira tentativa de diálogo com todos os leitores, para assim entendermos dimensões importantes na realidade brasileira (Estado, crime, violência, opressão, segurança, governo, terrorismo), sem cair em desinformações, discursos demagógicos, opiniões moralistas irrelevantes e pessoas desonestas que retrocedem nos debates políticos, acadêmicos e sociais sobre temas relevantes para nosso Brasil. Por esse motivo, é fundamental a contribuição de pesquisadores e cientistas, relacionando com os segmentos da sociedade que buscam avançar o conhecimento em prol de rompermos as contradições existentes e superarmos as nossas forças para um novo patamar social e político. 

Narco-Estado e Narco-Terrorismo

Os termos Narco-Estado e Narco-Terrorismo estão aparecendo na opinião pública brasileira, principalmente em redes sociais, matérias jornalísticas e discursos de atores políticos à direita em esferas online. Essa demanda foi intensificada por acontecimentos das organizações criminais como o Primeiro Comando da Capital (PCC), CV, TCP, dentre outras, durante o ano de 2025. Para exemplificar de um modo distinto, mesmo que não represente uma totalidade das informações adquiridas, mas recortes em espaços que as pessoas buscam informações e para se atualizar sobre as notícias diárias, foram utilizados um método para compreender essa relação. Na imagem a seguir, a partir da ferramenta do Google trends, foi realizado uma busca com as palavras-chave “Narco-Estado”, “Narco Estado”, “Narco-Terrorismo” e “Narco Terrorismo”, durante o período de 01/01/2025 a 06/11/2025. Justifica essa ferramenta como uma amostra de pesquisa para medir, mesmo com suas limitações e potencialidades, as buscas feitas pela maior plataforma de pesquisas na internet.

Na primeira imagem a seguir, foi empregado os termos “Narco-Estado”, “Narco Estado”, sendo a diferença entre as palavras somente o uso do hífen. O gráfico do Google trends mostra que a busca de informações sobre tal termo se manteve, em quase todo ano, em baixa, aparecendo com picos e três momentos específicos: abril (semana do dia 13 ao 19), Setembro (semanas do dia 31 de agosto a 6 de setembro e 14 de setembro até 27 de setembro) e outubro-novembro (com o dia 26 de outubro até 06 de novembro), sendo a cor azul para “Narco Estado” e vermelha para “Narco-Estado”.

Imagem 1: Pesquisa Google Trends Narco Estado e Narco-Estado

Fonte: Elaborado pelo autor

Na segunda imagem, há o gráfico com as palavras-chave pesquisadas “Narco-terrorismo” e “Narco Terrorismo”, sendo o primeiro em azul e o segundo em vermelho. Diferentemente do primeiro gráfico, só houve um pico de buscas por essa palavra entre o final de outubro e começo de novembro, encerrando no dia 06 de novembro, data da publicação desta pesquisa.

Imagem 2: Pesquisa Google Trends Narco Terrorismo e Narco-Terrorismo

Fonte: Elaborado pelo autor

Essa variação com picos está relacionada com o aumento do tema na opinião pública sobre acontecimentos específicos. No gráfico 1, em abril é o momento que tem o primeiro pico, podendo ser interpretada como o fim da trégua entre o PCC e o CV (tema que foi pesquisado e publicado em dois artigos no site do OSP), a intensificação do debate sobre as organizações criminais e as designações do governo Donald Trump em classificar como terroristas as organizações criminais e consequências de operações policiais, como na ação contra o TCP semanas atrás no Rio de Janeiro. 

Entre o final de agosto e o mês de setembro, foi realizada a operação Carbono Oculto, uma das principais operações policiais que focou no combate ao crime sem trocar tiro e matar nenhuma pessoa, apreendendo na região da Avenida Faria Lima na capital paulista, agentes e empresas ligados à lavagem de dinheiro, integração com a economia formal e utilização de Fintech com o PCC. Com os desdobramentos e achados da Carbono Oculto, o tema foi sendo potencializado na opinião pública, crescendo a atenção para o termo de Narco-Estado. Recentemente, com a megaoperação no Rio de Janeiro que deixou mais de 130 pessoas mortas e se tornou o maior massacre institucionalizado na história do país, os termos pesquisados bateram um pico histórico, estando em alta nas discussões da esfera pública.

O que estamos querendo dizer é que os termos Narco-Estado e Narco-Terrorismo não são algo orgânico, quer dizer, não é um movimento contínuo de debates, pressão e construção coletiva perante as esferas de discussão online ou presencial nos vários segmentos da sociedade. Mas como apresentado, elas só são utilizadas quando há acontecimentos relevantes que tomam a atenção da opinião pública em uma relação de causa e efeito, que na análise desta pesquisa, são instrumentalizadas como oportunidades para alcançar determinadas finalidades próprias. Dito isso, será explicada a discussão de Narco-Estado e Narco-Terrorismo. 

Mas o que é o Narco-Estado? 

Quando pensamos essa expressão, estamos incluindo duas premissas que fazem parte da própria palavra. Narco vem do imaginário dos narcóticos, relacionado com o uso, produção e vendas das substâncias psicoativas ou popularmente chamadas de drogas. Já o conceito de Estado, alvo de muitas pesquisas em diversas áreas do conhecimento, como sociologia, ciência política, relações internacionais, direito, história, dentre tantos, remete a múltiplos conceitos, que será explicada ao decorrer, mas em resumo, é a estrutura política com suas forças e instituições pela legitimidade de seu território e sua população.

Não há uma fundamentação precisa sobre o que é esse termo, sendo difícil analisar pelo viés do conhecimento, restando os meios de discursos e entrevistas de atores políticos para entender melhor. Os defensores desse termo (Alves; Batistela, 2025; De Souza, 2025; Jordão, 2025; Vieira, 2024), produzem mensagens, artigos de opinião e discursos que não desenvolvem o surgimento, atores, causas, dinâmicas e consequências, muito menos explicam o que realmente é um Narco-Estado, mas apenas transformam o tema como um adjetivo moral totalizante de um perigo eminente do crime se tornar um Estado, como um conceito-explicador que gera um temor sobre uma organização criminal onipotente e onipresente perante a sociedade. 

Os defensores do conceito de Narco-Estado utilizam uma série de acontecimentos reais no campo da segurança pública como pretextos para sustentar sua tese. Tais eventos incluem a opressão, violências, criminalidade, domínio territorial, exploração e abusos cometidos pelas facções. Além disso, são explorados: a inserção de organizações criminais na diversificação econômica (negócios legais e ilegais), o infiltramento nas instituições estatais, a influência e o envio de representantes a cargos eleitorais e dentro dos governos, bem como a intensificação do uso de armamentos sofisticados. O ponto não é negar esses fatos, mas sim criticar a relação inapta entre esses eventos com a interpretação e ressignificação que certos sujeitos argumentam que os modos atuais das instituições estatais estão sendo enquadrados como uma representação de um Estado-Fraco que estaria sendo cooptado pelo Narco-Estado.

Um Estado-Fraco?

O Estado Fraco remete a não dureza das instituições estatais em disciplinar e punir, com todo rigor, todos os indivíduos que cometeram determinados tipos de delitos, havendo uma necessidade de criar situações que combatam esse inimigo para demonstrar a força do Estado como em um cenário de guerra. Essa percepção é favorável para sujeitos que têm interesses em condições que evoluem para maiores poderes para forças de segurança, militarização e disciplinar sujeitos vistos como “potenciais perigosos”, nada diferente do que ocorre atualmente. 

Porém, os mesmos acusados que permeiam a classificação de Estado Fraco e evocam uma maior rigidez na punição são os mesmos que relativizam outros tipos de crimes, subvertido a lógica discursiva e argumentativa presente. Em outras palavras, isso significa que crimes sobre corrupção (como as tentativas do congresso nacional em ampliar a proteção para parlamentares, como na PEC da blindagem em setembro de 2025) ou a tentativa de golpe de Estado no dia 08 de janeiro de 2023 – por segmentos da extrema-direita bolsonarista – , não foram empregados no mantra de Estado Fraco para punir esses agentes. Pelo contrário, há acusações de ditadura do judiciário e punição extremada contra setores de empresários, políticos e manifestantes, tornando o Estado Fraco como um instrumento que não é universal e determina, apenas, os interesses daqueles que constroem um imaginário falacioso para benefício próprio. O ponto central nesse eixo é a instrumentalização de discursos que se beneficiam de interesses políticos, jurídicos e eleitorais, pronunciando um Brasil de ser um Estado Fraco, nos moldes apresentados, mas ignoram as contradições de outras situações como o 8 de janeiro ou PEC da Blindagem, pois nesses casos, o Estado é “malvadão”.

Da punição ao Narco-Estado

Outro apontamento levantado pelos defensores do termo de Narco-Estado reside na crítica ao sistema de justiça e na exigência de um maior endurecimento das penas contra criminosos. Isso reflete a disputa entre os setores punitivistas/repressivos e os garantistas/reformistas, que possuem visões de mundo distintas sobre as melhores estratégias para lidar com os problemas da justiça e do crime, embate que não será aprofundado neste artigo. Nesse contexto, sempre que há resoluções jurídicas que diminuem ou beneficiam réus (de forma temporária ou definitiva), os atores que defendem o conceito de Narco-Estado alegam que este está sendo efetivado por meio de acordos difusos entre juízes e integrantes das facções.

Essa premissa de um Narco-Estado é nebulosa, pois, embora seja inegável a pressão e o conluio de agentes estatais com as organizações criminais (seja por suborno ou cooperação mútua), é equivocado limitar essa conduta como um tipo de Narco-Estado, em razão que as organizações criminais não são a única que faz esse tipo de ação. Outros segmentos, como empresários, ruralistas, políticos e burocratas, também utilizam estratégias semelhantes para cooptar e enfraquecer operadores de justiça e evitar punições. A diferença é que não há uma recorrência em se pronunciar termos como “Empresa-Estado”, “Agro-Estado” ou “Centrão-Estado”. O cerne da questão é que os agentes do crime conseguiram crescer, negociar com atores institucionais e explorar suas “mercadorias políticas” (Misse, 2010), assim como outros setores da sociedade que cometem ilegalidades e enfrentam consequências penais, havendo diferentes casos sobre tal ocasião.

Uma economia do Narco-Estado?

A questão econômica é outro importante componente sobre o Narco-Estado, pois há uma presunção que as instituições estatais e todo o aparato governamental e da sociedade civil estimulam ativamente medidas para a ascensão e desenvolvimento das organizações criminais, facilitando a exploração das atividades narcos, ou seja, o tráfico de drogas. Para contestar essa ideia, é necessário pensar geograficamente as dinâmicas de produção, circulação e exportação de drogas na América do Sul. O Paraguai é um dos maiores produtores mundiais de canábis, com a produção concentrada nas regiões leste e sul, nas fronteiras com o Brasil (Manso; Dias, 2018). Já a produção da pasta base de coca e seus derivados é majoritariamente realizada na Colômbia, Peru e Bolívia, em áreas da região andina (Paiva, 2018; Manso; Dias, 2018).

Mas qual é, então, o papel do Brasil na configuração das drogas? O Brasil, juntamente com Equador, Venezuela e outras nações, não se destaca pela produção, mas sim como um entreposto comercial. Sua função primordial é garantir a circulação interna via varejo e a exportação das drogas para mercados consumidores em outros continentes, o que alimenta uma rede complexa e internacionalizada do comércio bilionário do tráfico. Na prática, atores criminais brasileiros, notadamente o PCC e o CV, recebem essas mercadorias em regiões de fronteira (Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná, Amazonas, Acre, Rondônia) e as escoam mediante duas rotas principais: a Caipira (Centro-Oeste, Sudeste e Sul) e a Solimões (Norte e Nordeste) (Abreu, 2017; Ferreira; Framento, 2019; Paiva, 2018).

As organizações de cunho nacional, notadamente o PCC e o CV, são cruciais na distribuição das drogas, abastecendo tanto facções locais quanto outros atores que operam o tráfico no varejo em pontos de vendas (como biqueiras ou bocas de fumo). A exportação, contudo, é destinada a um número reduzido de organizações, principalmente o PCC. Por meio de anos de contatos, travessias facilitadas pelo conluio de agentes do Estado, empresas privadas e receptores em outros países, o PCC vem conseguindo vender a preços que geram uma margem de lucro imensa. 

Como exemplo, segundo a pesquisa de Paiva (2018) na tríplice fronteira da região oeste amazônica, o quilo da pasta-base pode variar em espaços de produção, circulação e mercados consumidores em outros continentes. Ele avalia que em Manaus, o quilo de pasta-base pode custar entre R$ 7 mil e R$ 12 mil, valores que servem de preâmbulo para negociações de transporte da fronteira à capital amazonense. O transporte de apenas um quilo dessa substância pode render de R$ 1 mil a R$ 1.500, gerando uma atenção para rendimentos de agentes. Esses valores são flutuantes, dependendo da quantidade, das condições de transporte, dos riscos de segurança e da audácia do envolvido. Há uma estimativa que, ao chegar ao Nordeste, o quilo da pasta-base possa valer cerca de R$ 20 mil, e o mesmo quilo de cocaína de alta qualidade pode alcançar até 60 mil euros na Europa (Paiva, 2018).

Com isso, compreende-se que as organizações criminais exploram ativamente as rotas, infraestruturas, mercados, a corrupção e as contradições inerentes às instituições estatais. Esse modo de operar consiste em um negócio focado no trânsito e nas vendas de drogas no atacado e varejo, e não na obtenção de investimentos públicos diretos para a importação e comercialização dessas substâncias, o que traz que não há um favorecimento na dimensão econômica do Estado para essas facções, mas sim estratégias do crime em utilizar dos meios e lógicas econômicas para os seus próprios interesses.

Há quanto tempo a soberania está atacada?

Por fim, há muitos comentários de que a criminalidade organizada está acabando com a soberania do país para se tornar um Narco-Estado, favorecendo em questões sobre justiça, segurança, economia e poder político. Essa premissa recai em uma justificativa que promove uma percepção estruturante que as organizações criminais estão adentrando e configurando no topo da hierarquia da burocracia estatal, com conluios e avanços tolerados pelos agentes do Estado para as facções. 

Isso está equivocado, pois além de inviabilizar todas as ações das instituições estatais, as operações policiais e a inteligência investigativa, todos os confrontos entre as forças do Estado e o crime, as disputas internas e externas para fiscalizar os burocratas a níveis de rua e das instituições pela transparência e accountability, demonstra uma imagem do Estado passivo e anômico. Como discutido inúmeras vezes, processos de corrupção ou incursões em mercados, territórios e populações, não é exclusivo apenas as organizações criminais. Esses problemas, que devem ser combatidos, são operados também por outros segmentos, seja de empresários ou políticos, em que todos fazem negociações que atacam a teia social e o aparato do Estado. 

O diferencial é o domínio territorial autoritário e opressivo que as organizações criminais agem em periferias e favelas em todo Brasil, com cerca de 23,5 milhões de pessoas3 residindo em territórios sob a influência desses grupos criminais. Mas a sua presença, fortalecimento e construção de legitimidades com segmentos da população só é favorecido pelas contradições da presença e atuação do Estado nesses locais. Ou seja, a soberania nesses territórios era de pouca efetividade, fator preenchido pelo vácuo estatal pelos grupos criminais, exercendo sua gestão, código de regras, administração dos conflitos e punições para todos os moradores e trabalhadores que residem nessas regiões sob influência das facções. Isso não ocorre com os segmentos empresariais, ruralistas, políticos ou burocratas, sendo uma singularidade diante dessa criminalidade organizada.

É crucial entender que o Estado não se encontra ausente nesses locais, a questão central a ser analisada é, na verdade, quais são as formas de presença que ele pratica nesses territórios e em relação às suas populações, e se essa modalidade de atuação é universal ou difere em comparação com outras populações e territórios do país. As teorias de Bourdieu (2014) e Wacquant (2012) ajudam a entender essa condição, pois o Estado atua em diferentes dimensões, aqui diferenciando sua “mão esquerda” (educação, saúde, trabalho de qualidade, cultura, infraestrutura, saneamento, etc.) e sua “mão direita” (disciplina, repressão, defesa, forças de segurança, justiça penal, etc.). 

Neste caso, em territórios precários como as periferias, favelas e morros em todo o país, há uma sobreposição da mão direita sob a mão esquerda, fruto de políticas neoliberais que desembocaram na ausência de interesse político e econômico para construir melhores condições de vida para essas populações. Dessa forma, a soberania já vem sendo prejudicada nesses espaços, preenchida por outros grupos como as facções, que utilizam das contradições do Estado (discursos para suprir a mão esquerda e interesses que se beneficiam da mão direita), o que corresponde que o discurso de ataque as soberanias nada mais é do que as consequências da falta de qualidade da mão esquerda. Como citado anteriormente, o Narco-Estado não se adequa a essa realidade porque não há uma fundamentação que estruture o crime pela direção do Estado, seja um Estado-Fraco, as instituições de justiça e segurança, as dimensões econômicas e a soberania e ambiguidade da presença estatal.

Afinal, o que são as organizações criminais?

Um dos principais pontos nessa discussão é entender, de fato, qual a natureza que explica então o que são essas organizações criminais, se realmente são um Estado paralelo ou outro tipo de definição. Isso significa que essas facções não têm o objetivo de derrubar o Estado, de construir uma nova estrutura política que abarque as definições sobre esse ente, muito menos ser um grupo revolucionário que busque superar o status quo. Em todas essas ocasiões, todas as organizações criminais, sejam elas facções, milícias ou quadrilhas, os grupos não desejam romper com o que está na realidade, pelo contrário, as organizações se alimentam das contradições e exploram para garantir seus próprios interesses, agindo na ilegalidade para arrecadar maiores taxas de lucros, domínios territoriais, construção de regras próprias e instâncias de resolução de conflitos com punições e produção de subjetividades e simbologias. Essas dimensões de cunho político e econômico só serão realizadas pelas condições atuais do Estado brasileiro, das políticas dos governos e parlamento e das problemáticas que fomentam o desenvolvimento das economias legais e ilegais, das regras e direitos e da lógica de mercado e busca pelo lucro.

As organizações criminais são terroristas?

Essas definições sobre a natureza das organizações criminais já exclui, de antemão, qualquer qualificação de serem terroristas. O terrorismo é um conceito político sendo utilizado como um dispositivo de poder em disputa e uma forma de deslegitimação com o intuito de desqualificar adversários. Isso significa que alguns grupos (independente de sua natureza política-militar-ideológica) podem ser enquadrados como terroristas, através dos interesses e fundamentação dos países. 

Tais organizações são tipicamente identificadas como grupos subnacionais ou agentes clandestinos, podendo ser pequenos grupos, redes internacionais difusas ou mesmo atores estatais ou clandestinos patrocinados pelo Estado, e operam geralmente com uma cadeia de comando identificável ou estrutura celular conspiratória, cujos membros não utilizam uniformes ou insígnias de identificação (De Paula, 2013). A ação que as caracteriza é o uso premeditado do terror e da violência, ou a ameaça desta, com motivação predominantemente política, religiosa ou ideológica, e integra uma campanha de violência, direcionada contra alvos não combatentes, incluindo civis ou militares desarmados/fora de serviço. O propósito principal é intimidar ou coagir uma população civil, ou influenciar uma política governamental, buscando, através da violência, alcançar amplo alcance de repercussões psicológicas para instilar medo em uma audiência-alvo (De Paula, 2013).

A formalização de qual agrupamento é legítimo ou ilegítimo, sob a prerrogativa de ser considerado terrorista, é definida por cada país. Como exemplo, existem grupos chamados de terroristas por competências da ONU, Reino Unido, Rússia, EUA, União Europeia, dentre outros, como os fundamentalistas islâmicos (Al-Qaeda, Estado Islâmico e Lashkar-e-Taiba) (ONU News, 2025). Outros grupos, que lutam por independência nacional ou resistência à colonização (como Hamas, Exército Republicano Irlandês da Continuidade e Euskadi Ta Askatasuna – ETA), e ainda aqueles que lutam para superar a ordem vigente sob o viés socialista (como o Partido Comunista das Filipinas, Sendero Luminoso e Partido dos Trabalhadores do Curdistão), também são classificados dessa forma. Não há um consenso entre os países para determinar qual grupo é ou não terrorista, pois há interesses, acordos e motivações em cada realidade.

Nos casos das organizações criminais, elas não lutam contra uma independência de um povo ou resistência de colonização de um Estado invasor, não querem impor sua religião em um cenário de guerra como objetivo principal, muito menos não há o intuito de romper a ordem vigente (nenhum grupo é marxista, socialista ou comunista). Assim, os conceitos de criminal e terrorismo são diferentes em sua fundamentação e as particularidades de cada organização tem dimensões, interesses e estratégias que diferem contextos criminais e terroristas, o que torna impróprio do uso de Narco-Terrorismo.

Os usos do Narco-Terrorismo, como também do Narco-Estado, é instrumentalizado por estratégias oportunistas para criar situações inexistentes em realidades contraditórias, isto é, os atores que discursam sobre Narco-Terroristas não estão preocupados com a segurança da população, da regulação dos mercados, da presença da mão esquerda em territórios paupérrimos, do cumprimento de direitos sociais e humanos e do controle a criminalidade, pelo contrário, eles empregam esses termos para criar um quadro de interferência externa de países estrangeiros, aprofundamento da lógica punitiva que não resolve as raízes dos problemas e formas de governar através do crime (Simon; Silvestre, 2017), potencializando discursos e práticas para seus ganhos pessoais.

Modos de governo e governança criminal: Pensando saídas analíticas

Por meio de toda essa discussão a priori é que devemos explicar: as organizações criminais não é um Estado, Narco-Estado ou Estado Paralelo, elas se enquadram melhor como formas de governo, processos de governamentalidade ou ainda, uma governança criminal que se acopla a definição de literaturas acadêmicas que se expressam em pesquisas analíticas e empíricas. Modos de governar ou suas governanças podem ser atribuídos de diferentes formas, seja uma empresa, igreja, movimentos sociais, partidos, administração pública e também o crime. 

A governança é um desenho institucional que pode ser compreendido como uma estrutura que se manifesta em uma dimensão gerencial bem definida, outorgando poderes de tomada de decisão, gestão e a efetivação da maneira como a governança será operacionalizada em um dado contexto. Em uma acepção mais ampla, a governança é entendida como o processo de efetivação da ordem e dos direitos de propriedade, sendo esta uma perspectiva aplicada a diferentes cenários, incluindo a governança criminal (Arias, 2019; Lessing, 2021; Muniz; Dias, 2022). 

A governança criminal é caracterizada, especificamente, como um tipo de controle social e político imposto por grupos criminais organizados. O poder que esses grupos exercem reside em sua capacidade de agir com planejamento e controle de seus interesses econômicos e políticos nos territórios almejados. Eles demonstram aptidão não só para dominar fisicamente os territórios, mas também para influenciar a política local, frequentemente estabelecendo conluio e negociação com atores e segmentos do próprio Estado (Arias, 2019). Para isso, utilizam mecanismos de controle que envolvem práticas de repressão, vigilância, imposição de ordem e a relativização de direitos e garantias. Sua natureza é oculta, agindo pelas sombras e se fortalecendo nas fraquezas das instituições estatais e nas contradições inerentes ao capitalismo, numa dinâmica que, paradoxalmente, se complementa ao poder estatal (Lessing, 2021; Sampó, 2021). 

A relação entre a governança criminal e a estatal não é de rejeição, mas sim marcada por condições que, em determinadas ocasiões, desenvolvem laços de conluio entre agentes do Estado e segmentos criminais. Esse conluio visa moldar práticas violentas e/ou criminais para atender a interesses políticos e econômicos de indivíduos ou grupos (Arias, 2019; Alda, 2021). Diferentemente de grupos rebeldes que buscam a destruição da ordem, as organizações criminais, em sua busca por poder e lucro, não almejam a destruição do Estado (Lessing, 2021; Valencia, 2023). Desse modo, a governança criminal não consegue assumir o domínio completo de territórios, populações e dinâmicas, pois seus próprios membros necessitam de serviços básicos e de acesso a burocracias institucionais. Isso gera uma relação de complementaridade e simbiose entre o Estado e o grupo criminal. A simbiose é entendida como um fenômeno de coexistência e interdependência entre entidades diferentes e separadas (Estado e crime), resultando em cooperação mútua e benefícios peculiares para ambos, a partir de seus respectivos interesses (Alda, 2021; Feldman; Luna, 2022; Garzon, 2021; Lessing, 2021; Sampó, 2021; Valencia, 2023).

Portanto, seja o PCC, CV, TCP ou as milícias, essas organizações devem ser compreendidas na matriz de modos de governo, não empregadas como Estado, pois cada objeto representa formas particularidades de governanças e estão abarcados, de forma geral pela tutela do Estado, criando situações de simbiose exploradas para os benefícios e manutenção das estratégias de cada organização. Entender nessa matriz não inibe o seu controle e combate, mas fortalece processos de entendimento para efetivação de políticas públicas que consiga superar as causas, efeitos, atores e estratégias do crime organizado.

Considerações Finais

Por fim, foi dedicado este trabalho para desnaturalizar os termos Narco-Estado e Narco-Terrorismo, evidenciando sua fragilidade conceitual e a instrumentalização por sujeitos políticos conservadores e segmentos das forças policiais. A crítica à expressão de Narco-Estado se desenvolveu em múltiplos eixos. Primeiramente, questiona-se a premissa de que o crime, através da corrupção e conluio, estaria cooptando um “Estado Fraco”, tornando-se uma estrutura totalizante. Esta crítica aponta que a corrupção e a negociação com agentes estatais não são exclusividades das organizações criminais, e o uso seletivo do termo “Estado Fraco” serve apenas aos interesses de quem busca maior militarização e rigor punitivista. 

Em segundo lugar, o aspecto econômico refuta a ideia de que o Estado estaria ativamente estimulando o desenvolvimento dessas organizações. O Brasil atua predominantemente como entreposto comercial (circulação e exportação) e não como centro produtor massivo de narcóticos. As facções exploram as rotas, a infraestrutura, a corrupção e as contradições estatais para seu lucro, sem receber investimentos públicos diretos. Por fim, a noção de que a soberania nacional está sendo corroída para formar um Narco-Estado é refutada pela tese de que o que ocorre, na verdade, é o vazio deixado pela ineficácia da “mão esquerda” do Estado (Bourdieu, 2010; Wacquant, 2012) (saúde, educação, infraestrutura), preenchido pelo controle autoritário da governança criminal. 

Em suma, as organizações criminais não buscam a destruição do Estado ou superar o status quo, mas sim se alimentam de suas contradições como simbiose, agindo na ilegalidade para garantir lucros, domínios territoriais e poder político. Conjuntamente a isso, o conceito de Narco-Terrorismo é categoricamente impróprio. Baseando-se na fundamentação de que o terrorismo é um conceito político que exige motivação predominantemente política, religiosa ou ideológica contra não-combatentes (De Paula, 2013), o artigo demonstra que as facções criminais brasileiras não possuem a intenção de romper com a ordem vigente, promover revolução, impor uma religião ou lutar por independência nacional.

Seus interesses são primariamente econômicos e de domínio territorial, o que desqualifica a aplicação do conceito de terrorismo em sua base estrutural, tornando o termo apenas uma estratégia oportunista para criar um quadro de perigo inexistente e justificar o aprofundamento da lógica punitiva. Como alternativa conceitual, propõe-se que as organizações como o CV e PCC sejam analisadas sob a matriz da governança criminal, entendida como um modo de controle social e político imposto por grupos criminais. Essa governança se caracteriza pela simbiose com o Estado – uma coexistência interdependente – e pela capacidade de moldar o poder local através da violência, atuando nas fraquezas institucionais e nas contradições do sistema capitalista, sem jamais ambicionar a substituição total do aparato estatal.

Por fim, combater o crime é um atributo essencial. Desmantelar o poder das organizações criminais deve ser feito com as instituições do Estado, de maneira planejada e integrada, com repressão qualificada e agindo para inibir o poder desses grupos, sem recair na violência, abusos de poder e medo que atinge a população civil e sirva de motor para as organizações. Em complemento a isso, a mão esquerda deve estar presente, com educação, saúde, trabalho de qualidade, aumento de renda e infraestrutura que melhore a vida dessa população e impeça os discursos e práticas das facções perante o povo brasileiro!

Referências

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  1.  Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista – Campus de Marília. Pós-Graduado em Políticas Públicas e Projetos Sociais pelo SENAC/SP. Pesquisador do Observatório de Segurança Pública e Relações Comunitárias. E-mail para contato: eduardo.dyna@estudante.ufscar.br ↩︎
  2.  Facções, Comandos, Milícias, Quadrilhas, Bondes, dentre outras denominações. ↩︎
  3.  O dado é fruto da pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido do instituto Datafolha em 2024. ↩︎

Mestrando do Programa de pós graduação em ciências sociais (stricto sensu) na Universidade Estadual Paulista (UNESP) - campus de Marília, na linha 1: Pensamento Social, Educação e Políticas Públicas (2021-2023). Foi bolsista FAPESP, produzido uma pesquisa sobre as disputas de poder entre o PCC e a PM na chacina de 2015 em Osasco (2020).